A cultura como espaço de transformação social

Por Gabriel Santos Elias

Quando falo de transformação, falo no sentido de redução de desigualdades econômicas, políticas e de reconhecimento. Da articulação de uma nova organização social que inclua mais e mais pessoas no espaço público e na tomada de decisões, falo de uma política mais justa e mais humana. Essa disputa política deve ser feita em todas as frentes e acredito que a cultura é um espaço privilegiado de disputa política por uma transformação profunda da nossa sociedade. Assim, falo da produção, para constante reprodução e adaptação, de uma nova cultura, dinâmica e que avance na conquista de nossos ideais para a sociedade

Fortemente influenciados pelo enquadramento da mídia, temos uma imagem negativa da política representativa. Como conseqüência, muitas vezes escolhemos a apatia e desinteresse ou a eterna desilusão de quem se preocupa. Isso ocorre pela centralidade que damos ao papel do Estado e dos nossos representantes nessa transformação. A cada eleição temos esperança de que algo finalmente possa dar certo, sendo que a história normalmente nos mostra o contrário.

Devemos reconhecer, sim, a importância da disputa política institucional, aquela que é feita na luta pela vitória em eleições, construção de políticas públicas em instituições estatais e em instituições da sociedade civil, como ONGs e Associações. Mas é importante ter em mente que somente esses mecanismos institucionais não são capazes de realizar a transformação que queremos. Temos que transformar a cultura política da nossa sociedade juntamente com o Estado a que nos submetemos, organizamos e disputamos para também transformá-lo.

Dois problemas são os que mais limitam a transformação social que desejamos: a restrição de participantes do processo político e no debate público e as práticas viciadas que estes participantes sustentam.

Pois a cultura é um importante espaço de transformação social justamente por construir um caminho para resolver esses problemas, atraindo mais pessoas para o debate público, por sua abordagem diferenciada dos temas; e incentivando a criatividade política, através de práticas inovadoras, facilitadas pela maior diversidade de novos atores no espaço público.

A cultura é um espaço naturalmente mais atrativo para pessoas que sofrem uma justificada resistência com a política do púlpito, dos longos discursos, dos vícios de linguagem em palavras e siglas difíceis de entender. A cultura é diversa e dialoga com o cotidiano e com interesses das pessoas nela inseridas, seja na MPB, no rap, funk, grafitti, capoeira ou qualquer outra forma de expressão cultural. Essa diversidade deve ser aproveitada para incluir e ampliar também a diversidade de vozes no debate sobre os problemas da nossa sociedade e as possibilidades de mudança.

Ao mesmo tempo, a cultura é um espaço de criatividade. A inclusão de mais pessoas e a maior diversidade de meios de interação propiciam a inovação das práticas bem como uma reflexão diferente, mais profunda e ligada à realidade que essas pessoas vivem. A inovação e a criatividade geram uma forma diferente de fazer política que atrai mais pessoas, tornando o ambiente ainda mais criativo e atrativo.

É estabelecido, assim, um ciclo virtuoso que inclui cada vez mais pessoas no debate público trazendo novas idéias, o que inova a prática política e na ação pela transformação, aumentando o potencial do povo para a autodeterminação de seu futuro através da construção coletiva do poder popular.

O resultado dessa transformação poderá ser visto nas urnas e nas instituições políticas, mas como reflexo de uma transformação inserida no nosso cotidiano, através dos valores que estabelecemos, das práticas que sustentamos e das mudanças que buscamos na sociedade.

Twitter: @GSantelli

Observatório da violência policial contra manifestações políticas

Por Gabriel Santelli

Neste blog começamos, meio que naturalmente, um pequeno observatório da violência policial praticada contra movimentos sociais no Distrito Federal. Tudo começou quando nós mesmos estivemos em contato direto com essa violência nos diversos protestos que começaram no ano passado pedindo a saída e a devida punição aos corruptos encastelados no poder sob o mando de Arruda no Governo local. Naquele dia ficamos chocados com o nível da violência policial com a utilização de blindados do BOPE, cavalos e cachorros, bombas e tiros de “efeito moral” — que, como pudemos sentir na pele, não machucam apenas nossa moral — culminando em uma cena tragicômica em que um militante do movimento era atirado no chão em um golpe meio desastrado do próprio comandante da operação, o Coronel Silva Filho.

A batalha do Buriti, como ficou conhecida, pudemos ver aqui no blog através das escandalosas fotos dos diversos ataques.

Logo depois Gustavo Capela denunciou aqui no blog: Polícia Militar: Covardia Institucionalizada . O Professor Cristiano Paixão também escreveu brilhantemente sobre o fato em Dilema da Ação Política.

Não adiantou. Após a renúncia e a prisão de Arruda, quando elegeriam indiretamente na corrupta Câmara Legislativa do Distrito Federal o novo Governador do DF, o Movimento Fora Arruda e Toda a Máfia organizou um protesto em frente à Câmara. A reação da polícia novamente foi inacreditável em qualquer Estado que se queira minimamente democrático. Novamente expusemos aqui os fatos ocorridos. Publicamos tambem o relato da tortura sofrida pelo militante do movimento, Diogo Ramalho.

Mas não só a violência policial ocorrida no Distrito Federal acompanhamos por aqui. Recentemente Danniel Gobbi postou aqui vídeos chocantes da violência policial contra três protestos diferentes ocorridos em Santa Catarina.

Obviamente não tivemos a oportunidade de cobrir aqui outros diversos eventos, como a violência policial contra os manifestantes indígenas acampados na Esplanada, ou o despejo ilegal de manifestantes Sem Teto em Brazlândia, e tantos outros.

Na semana passada nos deparamos com essas imagens:

Nesse  vídeo podemos ver o momento exato [1:50] em que um participante da Parada Gay de Taguatinga se aproxima dos veículos da Polícia Militar para identificar quais eram os carros que acompanhavam o evento e os policiais que haviam supostamente agredido alguns dos participantes. Quando os policiais militares percebem que estão sendo fotografados perseguem o manifestante, prendem ele pelo pescoço e ainda dizem, ironicamente, “volta até o carro, vamos só conversar” enquanto o impedem de respirar, até que ele cai no chão desmaiado.

Quando outro policial vê um jornalista com a câmera [2:25] , ele diz: “Escuta aqui o que eu vou te falar, você vai apagar essas fotos que você tirou”. O jornalista, intimidado, apaga as fotos e o policial ainda pede para mostrar os arquivos do primeiro ao último, para se certificar de que nada daquela ação policial foi registrada.

Agora quero fazer as seguintes perguntas: com essas condições de segurança, como nós podemos exercer nosso livre direito de nos manifestar? A participação política, o interesse da população por temas de interesse social e nacional, não é afetada por essa constante repressão do Estado contra a sociedade?  Onde estão os responsáveis por essas ações ilegais? Onde estão os agentes do Estado que deveriam nos proteger dessas ações?

Devemos nos manter vigilantes para denunciar e dar visibilidade a essas ações. O nosso Blog está aberto para as denúncias necessárias.

A surdez seletiva do Judiciário

Por Alexandre Araújo Costa

O poder judiciário brasileiro sofre de surdez. Esse, contudo, é um diagnóstico banal, na medida em que um certo grau de surdez acomete não apenas todos os poderes judiciários, mas também qualquer outra instituição. Todo órgão que buscasse ouvir a tudo e a todos seria inundado por um oceano de informações e permaneceria enredado em um tal grau de complexidade que se tornaria incapaz de decidir. Assim, a sensibilidade judicial aos discursos sociais (que podemos chamar de sua audição) precisa ser seletiva, para permitir a tomada de decisões em tempo hábil.

Como a existência de uma audição seletiva é inevitável, torna-se preciso delimitar politicamente um certo espectro de discursos sociais a serem ouvidos, o que se faz tecnicamente a partir das categorias processuais de legitimidade da parte, possibilidade jurídica do pedido e interesse de agir. Quando qualquer desses elementos está ausente, o poder judiciário considera irrelevante o argumento. O judiciário, e não o direito, cabe ressaltar, pois as leis processuais regulam apenas o comportamento da burocracia judiciária estatal, que é apenas uma das instituições políticas ligadas à definição social do direito.

Frente a essa situação, algumas pessoas tenderiam a afirmar um certo grau de surdez judicial é condição de sua audição. Mas acho mais produtivo reconhecer simplesmente que a audição, como toda sensibilidade, é limitada. Assim, aquilo que está para além da audição não é surdez, pois reservamos essa palavra a uma espécie de deficiência. Os ouvidos humanos não são surdos para sons demasiadamente graves ou agudos, são apenas insensíveis. A surdez nos acomete apenas quando somos insensíveis para aquilo que deveríamos perceber.

Isso faz com que a surdez seja sempre uma categoria externa ao sistema, pois nenhum sistema é capaz de julgar a diferença entre sua insensibilidade e sua surdez. Um indivíduo que vê uma explosão e nada ouve não é apto a dizer se ele está surdo ou se foi o caso de uma inusitada explosão silenciosa. E essa incapacidade é maior ainda no poder judiciário porque os seus olhos estão vendados, no sentido de que ele tenta fechar os olhos e concentrar-se apenas na audição dos discursos que as partes levam a ele. Com isso, discursos judicialmente inaudíveis não podem ingressar no sistema mediante outras formas de sensibilidade.

A surdez judicial, portanto, não é a incapacidade de processar certos discursos, mas a sua insensibilidade aos discursos que o judiciário deveria ser capaz de ouvir. Durante muito tempo, por exemplo, esse poder foi insensível aos argumentos ligados às consequências sociais das decisões, pois se considerava que seu papel era simplesmente o de aplicar as normas. Porém, ao passo em que foi sendo minada a idéia da irresponsabilidade social do magistrado, houve um movimento no sentido da politização do judiciário e a referida insensibilidade passou a ser lida como surdez por vários setores sociais.

Assim, não é o judiciário que define a própria surdez, mas os outros sistemas sociais, como a política, a opinião pública e também a teoria jurídica, já que os estudiosos do direito podem avaliar o comportamento dos magistrados segundo parâmetros diversos daqueles que são institucionalizados pela prática judicial hegemônica. Esse tipo de deveria influenciar o sistema judiciário na medida em que ele não é um sistema fechado, especialmente porque seus operadores integram simultaneamente dos outros sistemas. Um juiz, por ser um magistrado, não deixa de ter opiniões políticas nem de estar vinculado ao discurso teórico sobre o direito. Portanto, é de se esperar que as suas decisões são permeadas pelas influências desses outros sistemas que ele integra.

Existe, contudo, um grande processo de insensibilização profissional, muito semelhante ao processo que leva os médicos a serem relativamente insensíveis à dor dos pacientes. Mas a insensibilidade judicial tem uma peculiaridade que a torna muito nociva: o médico normalmente se torna insensível ao sofrimento que ele visa a combater, enquanto o juiz se insensibiliza quanto à justiça que ele deveria promover.

Nos dois casos, porém, existe o risco de uma insensibilidade total, que reduz as atividades médicas e jurisdicionais a fins em si mesmos. Desligada da promoção da saúde ou da justiça, essas práticas profissionais terminam por ser uma aplicação automatizada de rotinas voltadas à eficiência do próprio sistema, medida em termos de número de atendimentos ou número de decisões. Nesses casos, o fechamento do sistema é tal que ele passa a atuar como se a função do médico fosse emitir um laudo qualquer e a do juiz emitir uma decisão qualquer, comportamento esse que é reforçado pelo fato de os sistemas autônomos somente valorizam a própria eficiência (capacidade de realizar os atos previstos) e não a efetividade (capacidade de realizar atos que respondam a demandas extra-sistêmicas).

A reconhecida tendência do judiciário a operar esse tipo de fechamento fez com que, desde a transformação dos judiciários em poderes políticos autônomos, fossem construídas garantias para manter os ouvidos dos magistrados abertos às demandas sociais. As principal delas são as garantias do contraditório e da ampla defesa, que objetivam manter a possibilidade de que todos os litigantes sejam ouvidos pelas autoridades que decidem acerca dos seus direitos. Apesar desses direitos estarem presentes nas constituições desde as primeiras declarações de direitos, mesmo nos estados contemporâneos de direito o judiciário desenvolve com relação aos litigantes uma surdez seletiva. Quando se trata de uma surdez eventual, isso pode ser considerado apenas um desvio do sistema, a ser corrigido pelos próprios instrumentos de regulação. Porém, o que observamos é a existência de uma surdez sistêmica, reforçada pelo fado de inexistirem instrumentos para a sua reversão e para a responsabilização dos agentes que a praticam.

Recentemente, estudantes da UnB enfrentaram um caso típico de surdez judicial seletiva e ilegítima. Um grupo de cerca de 50 jovens ocupou pacificamente partes de um prédio público em construção, como forma de manifestação política contra certas práticas recentes do Estado. Tratava-se manifestamente de uma ocupação simbólica, voltada apenas a chamar a atenção para os problemas da cidade, na data de comemoração dos seus 50 anos. Por isso mesmo se escolheu um imóvel desocupado, já que o objetivo não era perturbar a realização de serviços públicos. Sendo um imóvel em construção, optou-se por ocupar uma parte que já estava quase pronta e por adotar uma postura de não atrapalhar a continuidade da obra, que seguiu o seu ritmo normal, tanto que a própria construtora não tomou qualquer providência contra os ocupantes.

Todavia, o órgão público ao qual se destina a obra ingressou com ação de Reintegração na Posse, fundada na ficção jurídica da posse indireta, que permite ao proprietário o manejo de ações possessórias com relação a imóveis que ela própria não ocupa. Sabendo da interposição dessa ação, os estudantes mobilizaram um advogado que não teve acesso aos autos para fazer uma petição solicitando que os ocupantes fossem ouvidos antes da decisão, e me solicitaram que eu despachasse com o juiz para mostrar a ilegitimidade do pedido de reintegração. Fui imediatamente para a 3ª Vara da Fazenda Pública e pedi para ver aos autos, mas essa solicitação foi negada porque eles estavam conclusos ao juiz, para decisão. Em nome da garantia do contraditório, pedi para ver a petição inicial e para falar com o juiz antes que ele decidisse, mas enquanto esperávamos a resposta do magistrado recebemos a notícia de que ele acabara de determinar liminarmente a reintegração inaudita altera pars.

É verdade que o sistema jurídico relativiza o direito ao contraditório, permitindo que certas decisões sejam excepcionalmente tomadas sem que a parte cujo interesse atingido seja chamada para se manifestar. Todavia, utilizar esse mecanismo de surdez seletiva quando a parte prejudicada está presente e busca ser ouvida viola claramente o princípio constitucional do contraditório. Não se pedia a citação prévia nem prazo para contestação, mas apenas a possibilidade de ler a petição e argumentar com o magistrado antes que ele emitisse uma decisão que esgotava toda a controvérsia.

Somente depois da decisão tivemos acesso à petição inicial, que apresentava como prova dos fatos apenas um artigo jornalística que noticiava a ocupação. Assim, tomando por base uma evidência jornalística que indicava da existência da ocupação, o juiz Marco Antônio da Silva Lemos concluiu que a simples presença dos ocupantes constituía embaraço para as obras e caracterizava esbulho porque “pode implicar impossibilidade ou retardamento nas obras de inauguração da nova sede”. Assim, considerando que a presença dos ocupantes poderia implicar turbação na posse, o juiz concedeu o pedido de reintegração, sem levar em conta o pedido das partes de serem ouvidas sobre o pedido e sem levar em consideração nenhum dos argumentos que sustentavam a legitimidade da ocupação e a ausência de perturbação no exercício do direito de posse.

Essa decisão representa uma curiosa mistura de audição seletiva, em que uma única nota jornalística serve como prova suficiente do fato, e de surdez seletiva, em que a questão constitucional da legitimidade da ocupação foi simplesmente ignorada, o que implicou tratar uma manifestação política pacífica que não impedia o acesso ao bem como um esbulho que impedia violentamente o exercício da posse.

Existe interesse de agir quando uma parte solicita intervenção possessória para dissolver uma manifestação que não representa perturbação relevante ao exercício da posse? Por mais que essa questão seja controversa, é evidente que ela precisaria ao menos ser enfrentada, sob pena de o judiciário permanecer surdo ao caráter político da manifestação, que era evidente na própria notícia invocada como prova.

Frente ao reconhecimento dessa situação inconstitucional, reforcei perante o Juízo a solicitação de sermos ouvidos, para que ao menos a decisão pudesse ser legitimada pelo fato de levar em conta as versões fáticas e as argumentações jurídicas de ambas as partes envolvidas. Nesse caso, ouvir os ocupantes era especialmente relevante para a garantia do devido processo legal porque a decisão liminar tinha caráter satisfativo, sendo evidente que a determinação de desocupação imediata e coercitiva colocava fim à manifestação de modo definitivo. A resposta do magistrado, dada por um servidor visivelmente constrangido, foi:

O juiz disse que a decisão já foi tomada e que não receberá o advogado. Com isso, o magistrado definiu que todas as considerações fáticas e jurídicas dos manifestantes submetidos à sua decisão eram irrelevantes para a própria tomada da decisão. Uma escolha deliberada e consciente de surdez seletiva, em que os argumentos estatais foram ouvidos com grande amplitude e os argumentos dos cidadãos foram simplesmente desconsiderados, tratando-se o exercício do direito de manifestação política como um mero esbulho possessório.

Essa é uma situação em que se torna muito pertinente a observação feita por um juiz que, em sua recente dissertação de mestrado, afirmou: “há casos em que não enxergamos o que passa diante de nós; somos cegos para o óbvio e o extremamente visível. Geralmente, não enxergamos porque, por alguma razão, nos recusamos a ver. Por paradoxal que seja, dessa realidade óbvia só nos damos conta quanto alguém nos abre a percepção e assim nos força a tomar conhecimento da existência dela e a apreendê-la.” É justamente essa a origem da garantia do contraditório, que no caso permitiria ao menos que a evidente questão constitucional fosse tratada por um judiciário que se mostrou insensível a ela.

Paradoxalmente, a frase é do próprio juiz Marco Antônio da Silva Lemos, o que reforça o caráter trágico da situação: um judiciário que, embora ciente dos riscos inerentes ao fato de que às vezes somos cegos para o óbvio que nos recusamos a ver, permanece insensível aos argumentos para os quais magistrado escolhe dirigir sua surdez.

O Brasil que nasce na rua

Por João Telésforo Medeiros Filho

Os cometas não percorrem a mesma órbita, as nações não seguem o mesmo caminho.

O grande mestre Tobias Barreto proferiu esse belo e irrefutável aforisma em 1877, no seminal “Discurso em mangas de camisa” (leia! Aqui, a partir da p. 99), no Clube Popular de Escada, pequena cidade de Pernambuco. Em apêndice (p. 139-140) a ele, detalhou o sentido da afirmação:

Os cometas não percorrem a mesma órbita, as nações não seguem o mesmo caminho.

Há aqui a referência implícita à errônea opinião, geralmente acreditada entre nós, de que a história de um povo possa servir de norma para as ações de um outro. Assim vemos, ainda a esta hora, mais de um espírito culto, ou pretendido tal, reportar-se, ora à França, ora à Inglaterra, ora aos Estados Unidos mesmo, para ensinar a marcha regular do governo monárquico brasileiro! (…)

Ora, não precisa dizer, quanto esta instituição é acanhada e pueril.

Cada povo tem a sua história, e cada história tem os seus fatores. Tampouco se encontra duas nações com o mesmo desenvolvimento, como dois indivíduos com a mesma feição. (…)

a um povo não é lícito repetir ou imitar, nem a si mesmo, sob pena de cair no baixo cômico, inerente a todas as caricaturas. ‘Ai dos imitadores, se diz na poesia; porém três vezes mais dignos de lástima os imitadores políticos; eles são o presente mais perigoso, com que a cholera dos deuses pôde mimosear uma nação infeliz.’ Não hesito em fazer minhas essas palavras de K. Frenzel.

Assim, em suma, eu creio que não é lançando mão do programa revolucionário deste ou daquele país, nem trajando alheia roupa constitucional, que poderemos jamais elevar-nos e engrandecer-nos.

Alexandre Humboldt chamou a constituição inglesa um produto oceânico; nós seríamos ditosos, se também aquela que nos rege, pudesse pudesse por ventura qualificar-se de um produto selvático. A política autóctone, ingênita ao caráter do povo, é a única eficaz e vantajosa, por ser a única, também, capaz de desenvolvimento.”

O Grupo Brasil e Desenvolvimento compartilha firmemente da convicção de que o único caminho para o desenvolvimento brasileiro é a política autóctone. Trata-se da ideia de “pluralismo institucional”: instituições que tem êxito na organização de uma sociedade não necessariamente serão adequadas a qualquer outra, pois o contexto – cultural, econômico, social, político – no qual as instituições atuam, sob e sobre o qual  elas agem, varia de sociedade para sociedade. Podemos desmembrar analiticamente essa afirmação em duas: (i) instituições diferentes tenderão a surtir efeitos diferentes em sociedades diferentes (vide Dani Rodrik, Roberto Mangabeira Unger, Ha-Joon Chang, Marcus Faro de Castro, Joseph Stiglitz, David Kennedy…); (ii) as sociedades tem aspirações diferentes, padrões diferentes para  aferir se algo é positivo ou negativo – ou seja, determinado arranjo institucional que eventualmente gere em toda parte os mesmos efeitos pode ser legitimamente louvado por uma sociedade e repudiado por outra, pois os sistemas de valoração são diferentes, os projetos de sociedade são diferentes.

Precisamos, portanto, de um projeto à brasileira, segundo já se defendeu neste blog. Porém, o que é isso? Quem vai dizer o que é esse “à brasileira”? Como achar esse “caráter do povo” de que fala Tobias Barreto? Retomando indagação de Drummond reproduzida em outro post aqui: acaso existirão os brasileiros?

O desenvolvimento só pode ser fruto de uma política autóctone porque só ela poderá revelar para nós mesmos quais são nossas aspirações coletivas, qual sociedade desejamos construir coletivamente, qual povo queremos ser, qual povo somos. A identidade do povo brasileiro cria-se pelo processo cívico de engajamento coletivo na construção política da sociedade (e de autoconstituição do próprio povo). Essa identidade, numa democracia, é necessariamente dinâmica, aberta, reconstruída permanentemente pela participação cidadã, de descoberta e criação simultâneas de nossas identidades individuais e coletivas – que temos plena liberdade para mudar a todo momento. É isso que caracteriza a liberdade política de que falava Hannah Arendt, por exemplo, como possibilidade sempre aberta de natalidade, de aparecimento do novo no mundo, da recriação experimentalista de si e do todo social de que se faz parte. Reconhecer-se como parte de um povo é reconhecer-se como parte de uma dada comunidade política, e assim participar dessa esfera de invenção pública permanente daquilo que nos constitui. É ser parte (=participar) do poder instituinte da vida social. Negar esse direito de participação, de ser parte ativa do poder instituinte, é tornar impossível a cidadania. Continuar lendo