O corte orçamentário e as políticas sociais no Governo Dilma

Ana Rodrigues

O corte orçamentário da ordem de 50 bilhões anunciado antes dos 50 primeiros dias de governo dá o tom da política econômica nos anos Dilma. Diferentemente de Lula, a política de Dilma, ao que tudo indica, será marcada por austeridades, manutenção dos compromissos firmados com investidores internacionais em ralação à dívida pública, inclusive com aumento no percentual de remuneração destes, e possibilidades de controle de capitais.

No dia 13/02/2011 o jornal Correio Braziliense já apontava algumas tendências do reajuste orçamentário, confira a matéria disponível aqui. Na época, embora o discurso de Miriam Belchior de “fazer mais com menos” prevalecesse já na primeira reunião ministerial, Dilma afirmava que setores como educação, saúde, segurança e, especialmente o das políticas sociais, não seriam prejudicados. Nessa mesma edição do jornal, a Ministra do Desenvolvimento Social, Tereza Campello, anunciou que a estratégia do combate à miséria será promover uma espécie de rotatividade no benefício do Bolsa-Família. Segundo ela, as pessoas deveriam encontrar, como porta de saída do benefício, o empreendedorismo.

Corte feito, pode-se fazer a análise do que esses discursos realmente representam em termos de política econômica. O primeiro impacto que se pode constatar é a contenção da expansão do crédito, que foi experimentada pelas classes C e D no ano passado, facilitando a aquisição de vários itens de consumo duráveis (eletrodomésticos, carros, financiamentos imobiliários, entre outros). Embora essa contração do crédito derive do corte, que retira recursos dos investimentos públicos, está também relacionada à taxa de superávit primário, que deverá permanecer em 3,1% do PIB em 2011 (dinheiro que também será privado do gasto para remunerar juros da atual dívida pública), e ao aumento de 0,5 ponto percentual na taxa selic, passando de 10,75% para 11,25%, o que, segundo o Banco Central, representa o início de uma tendência. Essas medidas visam o controle da inflação, o que sem dúvida é benéfico para os consumidores, mas essas mesmas não são as únicas que desembocariam nesse mesmo fim. A elevação do superávit primário, por exemplo, é uma medida que tem como objetivo privar de investimentos setores importantes da economia para remunerar os credores da dívida pública brasileira.

Quanto às importantes áreas do governo mencionadas, uma delas, a educação, recebeu seu golpe de misericórdia no último dia 17/02, conforme a reportagem da Secretaria de Comunicação da Universidade de Brasília disponível aqui. O corte de 10% nas verbas destinadas às Universidades nem de longe representa suas necessidades frente a uma expansão que, em muitos casos, é da ordem de 100%. A questão põe em dúvida o compromisso dos governos petistas de fortalecer esse setor historicamente enfraquecido pelos processos de reajustes, arrochos, cortes, remanejamentos, entre outras terminologias que na prática significam a mesma coisa: redução de investimentos que sinalizam para a precarização dos serviços.

No tocante às políticas assistenciais e à saída delas pela via do empreendedorismo não se pode confundir isso com economia solidária, pois numa economia capitalista de mercado que tende ao monopólio as saídas empreendedoras não raramente terminam numa minoria bem sucedida (comumente já inicia capitalizada, o que não parece ser o caso em virtude da própria contração do crédito) e numa maioria fracassada e endividada engrossando as filas do desemprego.

Outro caminho desse empreendedorismo fantasioso costuma ser o aborto do emprego formal e a corrida para a informalidade, que atrai uma quantidade considerável de trabalhadores para os quais a economia parece não expandir. Esse tipo de ocupação, normalmente relacionada a trabalhos insalubres e imposta como alternativa ao abandono do Estado, reforçam a noção de cidadania pelo consumo em detrimento da reivindicação e da conquista de direitos sociais e de trabalho.

O ano de 2011 parece não ser tão promissor quanto foi 2010. No que se refere às perspectivas de desenvolvimento, a política econômica deu sinais de que, no que depender dela, recorrerá a um antigo prefeito romano e, como ele, lavará suas mãos.

Auditoria da dívida pública: verdade, justiça e soberania democrática*

Por João Telésforo Medeiros Filho

Transcrevo abaixo minha participação em audiência pública da CPI da Dívida Pública, na Câmara dos Deputados, no dia 4 de maio deste ano. O áudio está disponível aqui. O discurso foi feito de improviso, por isso retirei aqui algumas das marcas de oralidade.

Auditoria da dívida pública: verdade, justiça e soberania democrática

Bom dia a todas e a todos.

É importante que esse debate esteja acontecendo aqui hoje. Infelizmente, nós o vemos pouco pautado pela maioria dos meios de comunicação do Brasil, por poucos partidos políticos, e pouco pautado aqui por esta Casa. É lamentável a presença de poucos parlamentares aqui hoje. Esta Casa tem se desviado para debates menores, e tem deixado que a política seja vista pela população do Brasil como apenas um foco de escândalos de corrupção e não como um espaço de debate público dos grandes problemas nacionais. E esse sem dúvida é um dos grandes problemas nacionais: como já foi dito, 36% do Orçamento do ano passado foi comprometido com o pagamento dos juros e amortizações da dívida.

Eu venho de uma tradição de pensamento e de ação segundo a qual “a cabeça pensa onde os pés pisam”. Neste momento, lá na Universidade de Brasília, onde meus pés costumam pisar, nós estamos em greve geral de estudantes, professores e servidores técnico-administrativos há mais de cinquenta dias devido ao não pagamento da URP, uma parcela que é um direito adquirido de professores e servidores há mais de vinte anos e que agora se decidiu retirar. Uma clara precarização dos direitos dos trabalhadores da UnB, e que sem dúvida alguma tem total ligação com o pagamento dos juros da dívida, com o pagamento da dívida pública.

Esse ataque é feito pontualmente e resistido pontualmente em cada categoria, mas tem se articulado também numa luta nacional, numa luta global contra o direcionamento do orçamento público para o pagamento da especulação financeira e não para a remuneração do trabalho e o financiamento dos serviços públicos, que vão sendo precarizados (no caso da URP, o da educação).

Voltando à UnB, começou hoje lá um Seminário Nacional, que vai até amanhã, sobre tortura. E isso também está diretamente relacionado ao debate que acontece aqui hoje, porque no combate à tortura, assim como na questão da dívida pública, o Brasil – ou partes dominantes do Brasil – tem optado pelo caminho do não enfrentamento, pelo caminho do esquecimento do que representa o projeto constitucional democrático de 1988. Nós tivemos agora, recentemente, uma decisão do STF em que foi sacramentado o esquecimento, a anistia a crimes de tortura, e na questão da auditoria da dívida pública vê-se a mesma coisa: setores querendo pautar o esquecimento do dispositivo do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias que determina a auditoria da dívida.

Realizar a auditoria também é um requisito fundamental para que se finalize a transição democrática no Brasil. Até hoje nós não sabemos a verdade sobre os crimes cometidos pela ditadura: nós não tivemos abertura dos arquivos, nós não tivemos comissão de verdade. E essa abertura dos arquivos inclui também a auditoria da dívida, que é uma demanda por justiça e por verdade, tal como a demanda dos que foram perseguidos e torturados pela ditadura, porque o atual pagamento da dívida pública, o direcionamento dos recursos públicos para a remuneração do capital financeiro especulativo em detrimento das necessidades da população, é também uma forma de tortura.

A luta pela democracia no Brasil tem de ser retomada hoje, tem de ser aprofundada. Eu sou Coordenador de um DCE que se chama Honestino Guimarães, um estudante que foi perseguido pela ditadura, um desaparecido político. Ele não lutou contra a ditadura dos generais para que ela fosse substituída pela ditadura do mercado financeiro.

A ditadura do capital financeiro especulativo é um fato muito concreto. Gilberto Bercovici, Professor Livre-Docente de Direito Econômico da Universidade de São Paulo, afirma que o soberano, no Estado brasileiro hoje, é o mercado financeiro. Porque soberano é quem decide, e quem decide na nossa estrutura é o mercado financeiro. O mesmo também diz o Professor Emérito da USP Fábio Konder Comparato, assim como – embora talvez não com tanta veemência –, nesta CPI, o economista Luiz Carlos Bresser-Pereira, quando lembrou que a política do Banco Central não é determinada de forma democrática. Essa ideia de que o Banco Central tem de ser autônomo significa que ele tem de ser sequestrado, capturado por interesses privados que o utilizam para remuneração própria. Ou seja, os bancos escolhem qual política econômica o país deve ter.

O que nós precisamos ter nesta CPI é um passo inicial, o fortalecimento da luta pela verdade sobre a dívida, e na busca pela justiça, com respaldo em preceitos constitucionais claríssimos. A Constituição estabelece que o Estado tem de erradicar a pobreza, e que nenhum cidadão deve ser discriminado em virtude de nenhuma condição. Mas a política econômica do Estado brasileiro é discriminatória, ela viola o princípio constitucional da igualdade, porque ela estabelece que é mais importante pagar a suposta dívida do Estado com a parcela mais rica do que a enorme dívida social com a parcela mais pobre. Portanto, temos uma discriminação de classe claramente colocada na política de pagamento da dívida.

É uma política que também desrespeita os princípios republicano e democrático, porque o poder, numa república democrática,  se exerce em público, e a nossa política econômica é sequestrada por agências privadas de classificação de risco que sequer são submetidas a regulação pública. Marcus Faro de Castro, Professor da Faculdade de Direito da UnB e Doutor pela Universidade de Harvard, comenta que os códigos estabelecidos por essas agências de regulação privada, as regras de classificação em “investment grade” e outros códigos de investimento, são privados e muitas vezes inclusive secretos, protegidos por normas de propriedade intelectual (ver aqui, aqui e aqui). É um absurdo: o Banco Central fica eufórico ao ganhar o investment grade segundo critérios que sequer são públicos. Essa é uma clara violação não só ao poder de autodeterminação do povo, mas também ao direito à informação. O cidadão tem de ter o direito a saber ao menos, no mínimo!, quais são os critérios que determinam a política econômica. Isso tem de ser transparente.

Então, esta CPI tem de ser o passo inicial. Como todo regime de transição, ele se inicia com a busca pela verdade e prossegue nas reformas institucionais que têm de ser feitas. Reformas institucionais que têm de mudar a mentalidade que impregna este Parlamento, que não se vê no papel de dar voz ao povo brasileiro, mas também reproduz esse sistema de espoliação, e que mude a forma como o Brasil lida com as agências de classificação de risco, que o Brasil tome as medidas necessárias internamente e globalmente pela regulação pública ou pelo desprezo a essas agências em face das necessidades do povo.

Sobre essa agenda de reformas institucionais, volto ao mote de que a cabeça pensa onde os pés pisam, para lembrar que foi aprovado há dez anos, por este Congresso, a Lei de Responsabilidade Fiscal. Existe um movimento do Fórum Brasil do Orçamento para que ela seja transformada em Lei de Responsabilidade Fiscal e Social, porque, como eu disse antes, não existe razão que justifique que as necessidades sociais sejam colocadas em segundo plano com relação ao pagamento do capital especulativo.

É importante também frisar que a caixa preta que é o mercado financeiro é um dos grandes responsáveis pela crise que se vive agora (embora seja complicado falar que essa crise seja conjuntural, porque na verdade essa crise é permanente para a classe trabalhadora, ela tem apenas um momento mais agudo agora). E também nessa crise, na forma como se lida com ela – por exemplo, no pacote de US$ 700 bilhões que foi aprovado pelo Congresso dos EUA para auxiliar grandes bancos e empresas –, há denúncias muito sérias de que não houve qualquer tipo de regramento público nessa destinação – a professora Elizabeth Warren, da Faculdade de Direito de Harvard, faz críticas severas nesse sentido. Isso se reproduz mundo afora, tal como já ocorreu no Brasil no PROER, o que também contribuiu para o aumento da dívida.

A dívida tem uma origem injusta. Ela foi contraída não para financiar a efetivação dos direitos do povo brasileiro, mas em prol dos interesses de uma classe muito restrita. Porém, é o povo brasileiro quem paga essa dívida, são as camadas mais pobres da população, que pagam muito mais impostos. E além disso, essa dívida já está paga há muito tempo, com sobras. Então, essa dívida não é de modo algum uma dívida do povo brasileiro, e o povo brasileiro não tem de assumi-la.

Alguns setores afirmam, no entanto, que essa posição é utópica porque o Brasil tem necessidade de crédito no mercado internacional, então ele não pode simplesmente, por uma questão de princípio (que eles até podem conceder), abrir mão desse crédito. Mas, a questão é: de qual crédito o Brasil estará abrindo mão ao fazer uma auditoria da dívida? Qual será o investimento de que se abre mão ao se fazer uma auditoria da dívida? Eu tenho a impressão de que sim, se abre mão do capital especulativo que muitas vezes age de forma ilegal e não produz nada na economia real, para o empoderamento do cidadão, para a satisfação das necessidades sociais. Se for esse o capital que será afastado por uma auditoria da dívida, não há nada a perder. Porque o único capital que pode ser afastado por uma vontade pública de republicanizar, de tornar pública a regulamentação das finanças públicas do Brasil – ou das finanças do Brasil que deveriam ser públicas – é o capital que age à margem do Estado de Direito, da legalidade, de qualquer poder público.

Esse poder que se esconde, esse poder dos porões da ditadura de ontem que prossegue no poder oculto do mercado de hoje, das JP Morgan da vida, esse poder oculto não pode permanecer oculto numa democracia. Ele tem de ser trazido a público, porque numa democracia, como dizia Bobbio, não pode haver poder que se esconda, todo poder deve ser trazido a público para ser controlado.

Então, finalizo lembrando uma frase do Comício das Diretas, de Brasília, da época das Diretas Já. O poeta Tetê Catalão e o maestro Jorge Antunes, professor da UnB, compuseram a Sinfonia das Buzinas, e eles diziam que “sempre haverá quem se atreva às trevas”, “sempre haverá quem se atreva, mesmo por um triz”. Assim como lá na UnB nós resistimos – e com esse “nós”, eu me insiro por meio da memória coletiva nesse processo histórico – contra as trevas da ditadura, continuaremos resistindo às trevas do mercado financeiro. Trevas literalmente, porque seguem ocultas. E este Parlamento, nós só o reconhecemos como poder legítimo institucional do povo brasileiro na medida em que ele corresponda a esse anseio popular de emancipação.

Obrigado.

PS: Aproveito para convidar todos a assistirem, na quinta-feira da semana que vem, 25/11, às 9h da manhã, ao painel “Direito ao desenvolvimento: o endividamento dos países latino-americanos“, no âmbito da Semana Jurídica da UnB, que traz debates importantíssimos e grandes debatedores em torno do tema “Conexões: América Latina”. Deverá haver transmissão ao vivo pela internet, mantenham-se informados pelo twitter do CADIR-UnB.

PS2: o Campus Online traz, nesta semana, uma série de matérias sobre a dívida pública brasileira.  Começou muito bem, com uma entrevista com Maria Lúcia Fatorelli, que você pode ler aqui.

As injustiças do Fator Previdenciário e o mito do “rombo” da Previdência

Por João Telésforo Medeiros Filho

No dia 4 de maio deste ano, o Congresso Nacional, atendendo a reivindicação uníssona das centrais de sindicatos dos trabalhadores e diversos outros movimentos sociais, aprovou por amplíssima maioria o fim do fator previdenciário, mecanismo que em geral reduz a aposentadoria de quem se aposenta por tempo de serviço, tendendo a punir  os trabalhadores mais pobres e menos especializados. O Presidente da República, porém, vetou a derrubada do mecanismo, alegando não haver condições orçamentárias para suprir o aumento de R$ 10 bilhões nas despesas com aposentadoria que seriam geradas em 2010.

O veto foi aplaudido pela maioria dos órgãos de imprensa, que vinha “alertando” que o fim do fator previdenciário aumentaria ainda mais o suposto “déficit” da Previdência. O episódio configura-se, assim, como uma boa oportunidade para desvelar o caráter falacioso desse discurso e explicar por que não há “déficit” ou “rombo” na Previdência Social, uma vez que se assumam as premissas da Constituição Federal de 1988.

A conta que fazem para falar em “déficit bilionário” da Previdência é simples: tomam o valor com que contribuem os próprios segurados e subtraem daí o quanto se gasta para manter o sistema. Cálculo tão simplório quanto equivocado, pois o aporte dos trabalhadores não é a única fonte financiadora da Previdência: a Constituição estabelece um regime tripartite, sustentado pelos empregados, sim, mas também pelos empregadores e pelo próprio Estado. Ou seja, o governo, ao aportar recursos, está simplesmente cumprindo sua responsabilidade constitucional, e não cobrindo qualquer “déficit”.

Há duas razões importantes para que o valor das contribuições dos trabalhadores não seja suficiente para cobrir sozinho o total de custos da Previdência Social. A primeira é que, ao longo da história, o Estado desviou recursos da Previdência para outros fins, como a construção de Brasília, da ponte Rio/Niterói, o financiamento da Companhia Vale do Rio Doce, da Companhia Siderúrgica Nacional, etc. A segunda é que a Constituição de 1988 incorporou como beneficiados da Previdência milhões de trabalhadores, especialmente rurais, que nunca tinham contribuído para ela.

A Previdência é parte do sistema constitucional de seguridade social, e tem sido um instrumento muito importante de redução da pobreza e das desigualdades no país. Não faz sentido chamar de “déficit” ou “rombo” a necessidade de financiamento desse sistema. Seria como falar em “déficit” da educação ou “rombo” da saúde pelo fato de o Estado ter de investir nesses setores. Além disso, se ampliou direitos à Previdência, a Constituição também estabeleceu tributos que garantiriam os recursos. Quando contabilizada essa fonte, verifica-se que na verdade a Previdência é superavitária – tanto é que o governo costuma desviar parte da arrecadação dessas tributos vinculados à Previdência para pagar juros da dívida pública.

Outro engano do senso comum conservador normalmente veiculado na mídia é supor que o único caminho para reduzir a necessidade de financiamento da Previdência pelo Estado (o “déficit”) é reduzir benefícios ou aumentar o tempo de contribuição dos segurados. Na verdade, os problemas da Previdência radicam, em grande parte, fora dela: no mercado de trabalho. Graças a altas taxas de informalidade, desemprego e rotatividade, grande parte da força de trabalho está excluída da Previdência – o que é ruim tanto para eles, que ficam privados de benefícios, como para o financiamento do sistema. O melhor caminho para combater o chamado “rombo da Previdência” é investir no crescimento do trabalho formal e estável. Evidência disso é que em 2009, a seguridade social urbana fechou o ano com superávit de R$ 3,6 bilhões, como fruto do crescimento econômico e da geração de empregos nos últimos anos, apesar da crise; houve “déficit” somente na previdência rural, de R$ 40 bi, causado em grande parte pelo aumento do valor do salário-mínimo nos últimos anos, o que tem sido fundamental à redução da pobreza no campo, que traz consigo também o desestímulo ao êxodo rural, ao inchaço das cidades, e o incentivo à produção de alimentos.

O real e ainda gigante déficit do nosso país é social. Déficit de moradia, educação, saúde, alimentação adequada, transporte… Esse é o verdadeiro rombo que devemos combater, e para isso devemos reivindicar a destinação de mais recursos públicos para a seguridade social – em especial para a saúde, extremamente subfinanciada no país –, e não o contrário.

O que é o fator previdenciário e por que ele gera injustiças

Quando um trabalhador se aposenta por tempo de contribuição (35 anos no caso dos homens, e 30, para as mulheres), o benefício a que tem direito é quase sempre reduzido, devido ao “fator previdenciário”. Criado em 1999, esse mecanismo estabelece que quanto menor o tempo de contribuição e a idade do trabalhador e maior a expectativa de vida da população brasileira, menor será o benefício do segurado do Regime Geral de Previdência Social. Ou seja, quanto mais cedo alguém começa a trabalhar, mais anos será forçado a permanecer na ativa, se não quiser ser prejudicado pelo fator: uma pessoa que começa a contribuir para a Previdência aos 30 pode se aposentar sem perder nada aos 65; já alguém que começa aos 18 tem sua aposentadoria severamente reduzida, caso se aposente aos 53. A lógica é que quem se aposenta mais cedo tenderá a receber a contribuição por mais tempo, e portanto faria jus a valor menor de aposentadoria. Seu propósito é incentivar o trabalhador a postergar sua aposentadoria, prolongando o tempo de contribuição.

Os maiores prejudicados pelo fator previdenciário são os trabalhadores mais pobres e menos especializados. Em geral, precisam começar a trabalhar mais jovens, e assim podem atingir mais cedo o tempo de contribuição necessário para a aposentadoria. Porém, ao fazê-lo, são penalizados pelo fator previdenciário. Além disso, a alternativa de manter-se na ativa até uma idade mais avançada é mais difícil para eles, pois tem mais dificuldades de conseguir empregos estáveis após os 50 anos de idade, e portanto de se manterem como contribuintes da Previdência. Ou seja: o fator previdenciário tende a incidir predominantemente as aposentadorias que já são menores, reduzindo-as.

A idade mínima de aposentadoria exigida para que não haja impacto negativo do fator deverá seguir aumentando nos próximos anos, com o contínuo aumento da expectativa de vida dos brasileiros,. Mas, a que ritmo? O segurado não tem como prever o valor da sua aposentadoria com antecedência razoável, pois não pode adivinhar o crescimento da expectativa de vida da população. Além dos problemas já apontados, esse elemento de incerteza no cálculo do fator  dificulta o planejamento de sua vida profissional e pessoal.

Galbraith pai e filho, déficit público e a sabedoria convencional

Por João Telésforo Medeiros Filho

Transcrevo hoje aqui uma entrevista do economista James K. Galbraith que me lembrou bastante  um texto do seu pai, o grande John Kenneth Galbraith, sobre  a “sabedoria convencional“.

A esse respeito, Rodrigo Medeiros:

“(…) A perspicácia analítica de Galbraith ajuda a iluminar as trevas do misticismo difundidas pelo neoliberalismo no Brasil. Suas observações sobre a sabedoria convencional merecem atenção. Segundo Galbraith, a sabedoria convencional apóia-se nas idéias aceitáveis para buscar estabilidade. O senso comum e a intransigência são seus refúgios intelectuais. Sua articulação é prerrogativa de pessoas que buscam influenciar processos. A sabedoria convencional, no entanto, possui um terrível adversário: a marcha dos acontecimentos. O golpe fatal ocorre quando as idéias convencionais falham notoriamente em tratar certas contingências. As idéias que perdem vínculos com o mundo tornam-se irrelevantes.

O professor Galbraith apresenta uma série de exemplos. Merece destaque algo que a sabedoria convencional vigente no Brasil busca perpetuar como padrão mediocrático de administração pública: o orçamento equilibrado em épocas de crise. Desde o advento do Plano Real, os brasileiros já perceberam que a busca por um orçamento equilibrado representa uma perversa combinação de aumentos nos impostos e drástica redução dos necessários gastos públicos, além de aumento da taxa de precarização das relações de trabalho (desemprego mais informalidade), realidade vivida pela metade da população economicamente ativa brasileira.

No começo da década de 1930, ainda sob os efeitos da crise de 1929, o presidente norte-americano Hoover chamava a atenção para a “necessidade absoluta” do equilíbrio orçamentário. Franklin D. Roosevelt, por sua vez, foi eleito presidente, em 1932, com o compromisso de reduzir o gasto público e alcançar um orçamento equilibrado. Seguindo a sabedoria convencional, a receita deveria cobrir os gastos públicos de qualquer jeito e em qualquer circunstância.

As circunstâncias triunfaram sobre a sabedoria convencional. Já no segundo ano da administração Hoover, o orçamento estava fora do equilíbrio. Ao final do ano fiscal de 1932, as receitas eram inferiores à metade do gasto público federal. Durante a Grande Depressão o orçamento não ficou equilibrado nos EUA. Somente em 1936 as necessidades começaram a triunfar no campo das idéias. John Maynard Keynes lançou A teoria geral do emprego, do juro e da moeda. Conseqüentemente, a intransigência da sabedoria convencional na defesa de um orçamento equilibrado para todas as circunstâncias e em todos os níveis de atividade econômica foi abalada. (…)”

Agora, a recente entrevista do seu filho (original em inglês, aqui), em que ele desafia a sabedoria convencional sobre o déficit público. Fica o lembrete a todos nós: não aceitemos a sabedoria convencional (e, Galbraith lembrava, toda corrente ideológica tem a sua) sobre um assunto sem antes pensarmos pela nossa própria cabeça.

“O perigo que o déficit público representa é zero”

Em entrevista ao jornal Washington Post, o economista norte-americano James K. Galbraith, critica a receita ortodoxa que recomenda o corte de gastos públicos como maneira de enfrentar a crise. Para ele, trata-se de uma receita totalmente falaciosa e que está sendo imposta neste momento a vários países. “Isso está ocorrendo agora na Europa e é desolador. Exige-se que os gregos cortem 10% do gasto público em poucos anos. E se supõe que isso não afetará o PIB. É evidente que afetará. E estão obrigando a Espanha a fazer o mesmo”, critica.

Ezra Klein – Washington Post

“A idéia de que as dificuldades de financiamento (do Estado) emanam dos déficits públicos é um argumento apoiado em uma metáfora muito potente, mas não nos fatos, não na teoria e não na experiência cotidiana.”

“A receita que se sugere agora, de que é possível cortar o gasto público sem cortar a atividade econômica é completamente falaciosa. Isso está ocorrendo agora na Europa e é desolador. Exige-se que os gregos cortem 10% do gasto público em poucos anos. E se supõe que isso não afetará o PIB. É evidente que afetará. E afetará de uma maneira tal que eles não terão os ingressos fiscais necessários para financiar sequer um nível mais baixo de gasto público. E estão obrigando a Espanha a fazer o mesmo. A zona do euro caminha para o abismo.”

Um dos principais economistas de nosso tempo destrói sem contemplações o mito do déficit público e zomba da incompetência de seus colegas. Ezra Klein entrevistou James Galbraith para o jornal Washington Post. Reproduzimos a entrevista abaixo: Continuar lendo