Carta a Contardo Calligaris: O fim da história e as abstrações que matam.

Prezado Contardo,

Sou seu leitor e admirador de seus textos na coluna da Folha há muito tempo.

Lamentei muito, porém, certas ideias expostas no seu último artigo, “Saudade de ideias perigosas“, publicado no dia 14 de fevereiro.

Você comemora estar pronto “para uma democracia em que não se enfrentam projetos de sociedade”. Ao mesmo tempo, afirma que teriam deixado de existir livros perigosos, talvez depois da queda do muro de Berlim.

Trata-se, claramente, de uma defesa do “fim da história” da sua parte. As tais “grandes narrativas” perderam força porque a hegemonia de uma grande narrativa, a do capitalismo e de seu aparato institucional, é colossal. Discute-se apenas sobre quanto e como regulá-lo, bem como outras questões importantes, porém que não imaginam a radical transformação de suas estruturas.

O discurso que celebra o fim dos grandes ideais, das ideias abrangentes de compreensão da sociedade e de sua transformação, acaba por servir, afinal, para defender que não sejam discutidas nem questionadas as estruturas, forças dominantes, grandes mecanismos e ideologias que organizam concretamente a sociedade.

Suspeito que esse discurso, na medida em que defende e celebra a perda da dimensão da política como esfera de construção e disputa de visões de mundo e de sociedade, contribua ainda  para que se passe a compreendê-la e praticá-la segundo a ótica do consumo. Assim, não seria bom fazer política segundo ideais e ideias, mas sim conforme o comportamento de um consumidor, avaliando se vale mais a pena comprar o produto A ou B em certo tema, mas deixando de articular as “compras” entre si para avaliar o conjunto das forças sociais e dos projetos políticos em disputa.

Dá-se, desse modo, uma justificação “teórica” ao desinteresse por pensar a política com complexidade, lucidez, imaginação e rebeldia. A política despolitiza-se, e passa a ser uma questão de mera administração. Contribui-se para o processo de tecnoburocratização da sociedade e de sequestro das grandes questões do âmbito coletivo de decisão social; são decididas de modo indiscutível, em outros âmbitos, na esfera de auto-reprodução do Estado e do capital, e apresentadas como necessidades inescapáveis.

Não por acaso, o discurso a-ideológico recentemente assumido por Marina Silva assemelha-se tanto ao de Gilberto Kassab (aliás, não à toa o Walter Feldman, secretário da administração de Kassab, agora tá com a Marina, né?). A diferença entre os dois seria apenas relativa à “ética” (esvaziada de conteúdo político) e à “boa administração” (idem)?

As pessoas são estimuladas por esse discurso a tomarem sua ignorância como um conhecimento perfeito. O sujeito que não pensa sobre o que a concentração fundiária tem a ver com a concentração dos meios de radiodifusão, e o que isso, por sua vez, tem a ver com as altas taxas de juros cobradas pelos bancos e o seu poder de pautar a imprensa e o poder público, é levado mais facilmente a crer que não é um problema que ele não o pense; não pode haver mesmo o que pensar aí, porque não há vínculo de projeto entre as diversas questões que organizam a sociedade, cabe apenas pensá-las isoladamente. Despolitizadamente, afinal.

Toda ignorância é relativa, é ignorância de um conhecimento determinado, e todo conhecimento é também ignorante. Mas, é interessante perceber como esse conhecimento sobre o caráter fragmentário do mundo, da sociedade e da política – o que é, certamente, uma verdade, porém relativa e parcial (disso, parece esquecer-se parte desse pensamento “pós-moderno”) – tem tornado muita gente insensível à necessidade de fazer articulações, pensar o todo e articular as transformações em projetos comuns. Pensar o todo ou pensar contra ele, a depender da epistemologia e da posição política. Mesmo para pensar contra o todo, porém (contra a unidade, contra totalizações), é necessário levar em conta que há um projeto unificador, totalizante, que tenta se impor e em grande medida se impõe à sociedade: o projeto do capital, imbricado ao do Estado tecnoburocrático.

A palavra “capital”, por soar abstrata e referir-se a uma “grande ideia”, dói em muitos ouvidos, e deve doer no seu também. Lembro-me, porém, de um personagem d’A Peste, de Camus: “quando a abstração começa a nos matar, é necessário que nos ocupemos da abstração”. O capital é uma dessas abstrações que mata incessantemente. O Estado é outra. Continuar lendo

Aula 3 – Curso ONLINE de Economia à esquerda


Descrição do curso

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Aula 3 – Cenário mundial 2008/2011 – Crise do capitalismo financeiro ou crise do capitalismo?
Data: 23/06, 14h às 18h
Professores: Carlos Alberto Ferreira Lima e Emílio Chernavsky

Ementa: Economia política do capitalismo financeiro. Movimento de capital. Capital fictício e crises financeiras. Origens da crise iniciada em 2008. Mudanças estruturais e impactos da crise nos mercados emergentes.

Restauradorismo complacente

Nesta entrada de década, diante das experiências sociais humanas atabalhoadas na financeirização, repousamos o olhar neste imenso continente, onde nossos bosques tinham mais vida, e nossas vidas, mais amores.

Trocadilhos à parte, andei a espiar alguns vídeos de um debate realizado na USP, em 28 de agosto de 2012, sobre a “Ascensão Conservadora” no Brasil, do qual participaram o cientista político André Singer, e os professores de filosofia política Marilena Chauí e Vladimir Safatle.

Chamou-me a atenção o uso de uma expressão, por Singer, para designar o sentido da onda neoliberal iniciada na década de oitenta: restaurador. Chamou-me mais atenção pelo uso da palavra, pois “restauração”, no jogo das palavras do cenário político, quase sempre está carregada de um simbolismo cheirando a mofo e monarquismo, antigo regime e tradição, e muito menos ao caráter estruturante, senão pragmático, do discurso neoliberal.

Segundo Singer, a razão de ser restaurador é exatamente o fato de que a onda neoliberal estaria a serviço daquilo que o capitalismo tem de mais destrutivo: a mercantilização de todas as áreas da vida, o individualismo feroz, a concepção de polivalência da iniciativa privada aos problemas sociais e a demonização das formas de intervenção do Estado para a resolução de tais problemas.

Permita-me o leitor discordar. Não dessas características, típicas da práticas e discursos conservadores, mas da atribuição delas a um caráter restaurador da ordem neoliberal. Discordo, aqui sim, do fato de que a ordem neoliberal proponha-se a restaurar qualquer coisa que seja, quando assume o serviço destrutivo: sua dimensão ajusta-se, em verdadeiro cálculo de conveniência, às transformações impingidas pelo processo de globalização de mercados e capitais, destrutivo por si só.  Sua missão é muito mais conformar-se e conferir forma à realidade, que devolvê-la algum passado, próximo ou distante. Conservadora exatamente por isso. Continuar lendo

Do ambientalismo catastrofista à ecologia dos desejos

“O socialismo só pode chegar de bicicleta”, disse certa vez o socialista chileno José Antonio Viera Gallo. A realização do socialismo exige, hoje, que rompamos com a ideologia produtivista da sociedade industrial, simbolizada pelo automóvel individual motorizado. Seria ambientalmente viável garantir “carro para todos”? Isto é, faz sentido que o sonho socialista seja promover a inclusão de todos na sociedade de consumo tal como existe hoje? Ainda que quiséssemos isso, é provável que os ecossistemas deste nosso planeta não suportem 7 bilhões de pessoas consumindo bens materiais no nível, por exemplo, da classe média alta brasileira.

Construir uma sociedade justa e que garanta bem-estar a todos, então, exige de nós muito mais do que o desenvolvimentismo de esquerda tenta nos oferecer – isto é, crescimento econômico acompanhado de distribuição de renda. É preciso repensar e transformar as bases do nosso modo de vida, dos meios de transporte e fontes energéticas em que nos baseamos, dos bens que avidamente consumimos.

Talvez o caminho não seja consumir menos, mas de um jeito diferente; canalizar nossos desejos de outras maneiras, para outros e novos objetos. O socioambientalismo fracassará, se sua mensagem às pessoas for: “desejem menos“. Esse discurso ambiental catastrofista, que exerce o papel de superego da sociedade de consumo em massa, dificilmente poderá ser o parteiro de modos de vida diferentes. O máximo que conseguirá é que as pessoas passem a consumir com maior culpa – aliás, quem sabe não consumam ainda mais, em busca dos prazeres inconscientes de transgredir um dever, ou como mecanismo de fuga à ansiedade e depressão diante do fim-do-mundo-que-se-avizinha e da sua culpa por ele… Ou, então, talvez algumas delas limitem-se a mudar as suas condutas individuais, reproduzindo o velho mecanismo descrito pelo psicanalista Contardo Calligaris: “Além de dar sentido ao meu mundo, a culpa me oferece a ilusão de agir de maneira eficaz: como o flagelante, posso esperar que minha renúncia ao prazer suspenda a punição. De repente, doenças e catástrofes talvez parem diante de minha conduta meritória. Em vez (ou além) de procurar as condições de prevenir um terremoto ou de debelar um câncer resistente, rezarei noite e dia e me fustigarei em penitência. Se, de qualquer forma, o terremoto vier ou o câncer triunfar, será porque não me açoitei o suficiente.”

Claro que precisamos mudar padrões de consumo, e consumir menos carros, por exemplo, é parte importante disso. Porém, não será com pesadelos sobre o fim do mundo e discursos ascetas contra o consumo que seduziremos amplas parcelas da sociedade (a começar de nós mesmos) a desligarem os motores e pedalarem num rumo sustentável. Precisamos de sonhos, imaginários e desejos afirmativos, que não façam apologia do sacrifício individual em nome do combate ao mal coletivo, mas sim do engajamento (inter)pessoal em novas formas de convivência social, de relacionamento com os outros e com as coisas, que tragam mais oportunidades para uma vida mais plena, intensa, autêntica, singular – e, nesse sentido, feliz.

Não adianta dizer às pessoas: “o capitalismo é a felicidade, mas isso não é possível para todos, então sejam menos felizes, controlem seus impulsos consumistas, para ao menos sobreviverem”. É preciso diagnosticar como o capitalismo nos isola, nos põe uns contra os outros, destrói experiências de compartilhamento, esforça-se para homogeneizar e burocratizar tudo e todos, submetendo-nos à sua lógica implacável – para depois vender “diferenças” pasteurizadas e objetivadas sob a forma de mercadorias. Ou seja, o capitalismo é a destruição das culturas indígenas e do Cerrado nativo, no Distrito Federal, para que em seu lugar se construa um bairro “ecológico” de alta classe, o “Setor Noroeste”; é transformar a resistência em produto de boutique; é parasitar a alegria do jogo, do futebol, e usar uma Copa do Mundo como pretexto para despejar milhares de pessoas de suas casas, e bilhões de recursos públicos nos cofres de poucas empresas privadas… Essa não corresponde exatamente à minha imagem do que é felicidade…

Não basta, no entanto, ser “anticapitalista”, nem anti catástrofe ambiental e humana, nem nenhuma outra forma melancólica que se esgota no “anti”. “É preciso”, como afirma o Manifesto da Universidade Nômade, “resistir na alegria, algo que o poder dominador da melancolia é incapaz de roubar. Quando o sujeito deixa de ser um mero consumidor-passivo para produzir ecologias. (…) É preciso criar desvios para uma vidaMaisvida: sobrevida, supervida, overvida. Pausa para sentir parte do acontecimento, que é a vida”.

O sonho de comprar um carro não é o de ter um agregado de ligas metálicas e de borracha na sua garagem. É o desejo de mobilidade, por um lado; e, por outro, o de consumir um bem simbólico que agrega status, de diferenciar-se socialmente com base na capacidade de possuir coisas. A alternativa que precisamos construir à ideologia individualista do consumo e da competição deve oferecer a resposta a esse desejo material de locomover-se (assim como ao de educar-se, comunicar-se, etc), mas, mais do que isso, deve anunciar e compartilhar a alegria do comum: a alegria de que a minha diferença não implique inferioridade, menor diferença (menor poder de consumo, de possuir coisas, no capitalismo) do outro, mas potencialize ainda mais as suas diferenças; que essas diferenças se encontrem, se vejam, se multipliquem, entrem em diálogo e em conflito no espaço público. A alegria dos encontros, em oposição ao mundo higienizado e homogeneizado do capitalismo, cujo símbolo mais eloquente talvez seja, mais do que o carro, com seus vidros levantados contra a rua, o condomínio fechado, que já leva o ensimesmamento e aversão à diferença no próprio nome.

O que queremos é uma vida com mais prazer, e não com menos; ou melhor, com mais prazeres, para além da uniformidade dos shoppings centers. Prazeres compartilhados,  porque compartilhar alegria e prazer é a melhor forma de multiplicá-los. “Happiness is only real when shared”, como disse Christopher McCandless…

É preciso caminhar ou pedalar, alegremente, a dez por hora, e fazer disso não um gesto indvidual, mas de reconquista coletiva do espaço público, compartilhado, que nos foi usurpado. Canalizar desejos para novos objetos exige de nós que produzamos (isto é, sejamos) novos sujeitos, como de certa forma lembra o Bruno Cava. Construir essas novas subjetividades só pode ser obra de uma práxis transformadora, de singularidades que se constróem juntas, coletivos que proliferam “na rua, no meio do redemoinho”…

Sob inspiração dos encontros com as companheiras e os companheiros  do projeto 10porHora, do coletivo Rodamoinho, da Universidade Nômade