Impeachment: uma história de vários séculos e um julgamento de poucas horas

O impeachment, podendo ser traduzido como “impugnação de mandato”, tem origem inglesa e surge por volta dos séculos XIII e XIV como um instrumento de instauração de uma investigação contra alguém acusado pelo clamor público no âmbito do parlamento. O caso famoso do Lorde Latimer, em 1376, representou uma primeira racionalização do processo de impeachment, estabelecendo que os réus fossem somente agentes políticos e que as penas cabíveis pudessem variar desde a perda do cargo até castigos corporais e penas de morte. A câmara dos comuns seria a responsável por acusar e a câmara dos lordes responsável por julgar o réu.  Lembrando que, a partir da doutrina do “The King can do no wrong”, que pregava que o rei não era responsável pelos seus atos, apenas ministros e conselheiros poderiam ser submetidos a julgamento.

Nos séculos XV e XVI, há um recuo da utilização do impeachment no parlamento. Já no século XVII, os comuns buscavam processar politicamente o Sir Giles Mompesson. Recorreram novamente ao instituto do impeachment, procedimento levado a cabo somente pelo parlamento e que não estava sujeito ao poder de perdão do rei. Após a condenação do Sir Mompesson, os comuns passaram a processar vários importantes políticos do Reino. Para se livrar do longo processo de impeachment, que gerava impopularidade e que podia culminar em gravíssimas penas, o ministro ou conselheiro renunciava antes mesmo da instauração do processo. Daí que esses políticos que não agradavam aos parlamentares não ficavam no cargo por muito tempo. Aponta-se esse costume decorrente do impeachment foi uma das principais causas do fortalecimento político do parlamento inglês e do processo histórico de construção do parlamentarismo naquele país.

Enquanto outros procedimentos para processar agentes políticos, mais simples e com penas mais leves, eram criados e utilizados na Inglaterra, os Estados Unidos importavam, primeiro para as constituições de Virgínia e de Massachussets, e depois para a constituição federal, o instituto do impeachment. Nos EUA, o impeachment se torna um procedimento intrinsecamente político, com penas políticas apenas. A obsessão dos founding fathers com o controle do poder resultou na criação de mecanismos de responsabilização do presidente e dos demais agentes públicos, com a possibilidade de afastamento do cargo em caso de traição, suborno, altos crimes e más condutas.

O impeachment, no Brasil, foi inserido primeiramente na constituição de 1891, com inspiração na constituição dos EUA. Passou a estar previsto em todas as constituições posteriores. O procedimento hoje delimitado na Constituição de 1988 determina a passagem do processo pelas duas casas do Congresso, exigindo em cada casa uma votação expressiva de 2/3. Além disso, prevê o afastamento do presidente por 180 dias após a instauração do processo e também lhe garante ampla defesa e contraditório.

Por se tratar de um procedimento extenso e traumático, o impeachment deve ser levado a cabo preferivelmente em casos de gravíssima crise institucional e de incontornável rejeição popular e política. Não obstante, não basta a rejeição. É preciso que haja o cometimento de uma falta grave, prevista constitucionalmente, o que chamamos aqui de “crimes de responsabilidade”. O julgamento político deve ser realizado com respeito total à constituição e à lei, a partir de uma acusação com base nesses “crimes políticos”. O direito constitucional, portanto, delimita um espaço institucional de resolução desse tipo de crise política grave, a qual seria normalmente resolvida por meio da força, com a invasão do gabinete com armas.

No Paraguai, o processo de impeachment contra Fernando Lugo durou somente dois dias. Dois dias para abertura do processo, acusação, defesa, julgamento e condenação. Em dois dias não há como produzir uma acusação bem fundamentada, não há como elaborar uma defesa, não há como apreciar o caso e julgá-lo com serenidade e não há como a sociedade se mobilizar. Os advogados do presidente buscaram garantir o prazo legal de 18 dias para elaboração da defesa, mas não obtiveram sucesso. Não há procedimento constitucional quando ele está fundado em inconstitucionalidades.

Então, por favor, não me venha dizer que no Paraguai foi tudo feito na ordem constitucional. O que aconteceu no Paraguai foi um golpe travestido de impeachment, algo que não se coaduna, de nenhuma forma, com a ideia de soberania popular e democracia. É preciso ter muito cuidado com essa nova modalidade de golpe “dentro da institucionalidade”.  Tal golpe usurpa para si a legitimidade constitucional e, ao fazer isso, desfere na constituição e na história do constitucionalismo um golpe cruel e irremediável.

(Feliz dia das mães) Maternidade como escolha

Por Laila Maia Galvão

Participei, recentemente, de uma cerimônia de colação de grau em que uma estudante fez o discurso de homenagem aos pais. O tom do discurso era de agradecimento. A forma pela qual a aluna dizia obrigada parecia focar o grande peso que é assumir a responsabilidade de ser mãe: falou-se em “sacrifício” e em “abrir mão” da juventude, da liberdade e dos sonhos para assumir a tarefa de ser mãe e viver única e exclusivamente em função de outro ser humano.

De outro lado, há por aí um discurso comum que enxerga a maternidade como algo divino, em que a mãe se torna uma espécie de Virgem Maria, um ser sagrado, intocável, que não comete erros.  Não é por outro motivo que a questão da depressão pós-parto ainda é um tabu em nossa sociedade, sendo a mulher que passa por isso considerada uma aberração por ser incapaz de assumir com serenidade a sagrada missão de ser mãe.

O discurso da “mãe santa” é o outro lado da moeda do discurso do “sacrifício”. As ideias que vinculam a maternidade a um trabalho hercúleo e penoso ou então a uma experiência divina e redentora tratam a maternidade como essa enorme carga que a mulher deve carregar por conta própria. Continuar lendo

Big Society Capital: a solução não está na City

Por Laila Maia Galvão

A Europa enfrenta grave crise econômica e social já há algum tempo e, até o presente momento, os países que formam a união europeia têm encontrado dificuldades para delinear uma solução consensual. Na medida do possível, cada país tem adotado suas próprias fórmulas de modo a lidar com as crises interna e externa.

Na Inglaterra, após o escândalo do mês passado envolvendo as visitas de doadores do Conservative Party ao Primeiro Ministro no 10 Downing Street, David Cameron resolveu anunciar a implementação de um novo programa de investimentos na área social, que vai além do Estado e das instituições de caridade. De acordo com a The Economist, a ideia de Cameron de que o espírito comunitário pode resolver problemas sociais melhor que o Estado não é nova. Ainda na campanha eleitoral, a expressão “big society” foi usada por Cameron (“to invite British people to join his government as part of an open, big society”), mas seus companheiros de partido o dissuadiram de usá-la, por ser difícil de explicar. Somente nesse mês de abril Cameron decidiu inaugurar um banco de investimento social, que será capitalizado com aproximadamente 600 milhões de libras.

O Big Society Capital (BSC), na verdade, atuará como uma organização administrada independentemente do governo, emprestando dinheiro, via intermediários, a programas sociais. Esses intermediários são chamados de SIFIs (social investment finance intermediaries) e podem ser (i) bancos sociais que já emprestam para organizações que visam o benefício social e ambiental; (ii) fundos que investem na área social que poderão gerenciar fundos  em favor de outros investidores; (iii) outras entidades de oferecem prestação de serviços a programas sociais.

Alguns questionam a viabilidade econômica desse empreendimento. A The Economist aponta que há uma grande quantidade de dinheiro disponível e que há poucos empreendimentos seguros para se investir, o que poderá gerar desperdício de dinheiro. Assim, só se poderá avaliar a eficácia do Big Society Capital se houver geração de rendimentos a partir de bons investimentos sociais.

Por outro lado, outros questionam o impacto social negativo que tal Fundo poderá gerar. O Big Society Capital busca fazer com que organizações voluntárias e de caridade que antes dependiam de contratos com o governo não dependam mais desse apoio. O jornal The Independent chama atenção para o fato de que essa estratégia de os grupos comunitários locais passarem a administrar as bibliotecas, ginásios e correios de seus bairros não será suficiente para aplacar o enorme rombo nos serviços públicos causados pelos cortes de gastos promovidos por Cameron.

De acordo com o editoral o The Independent, a ideia de destinar essa quantidade significativa de recursos que estava parada em contas de banco para a área social é, de qualquer forma, bem-vinda. No entanto, é de se questionar a forma como essa destinação de recursos será feita. O programa parece um pouco mais do mesmo. O Big Society Capital será administrado por pessoas diretamente vinculadas ao mundo do sistema financeiro. Seus administradores serão Nick O’Donohoe, que ocupou o cargo de “Gobal Head of Research” do JP Morgan entre 1996 e 201,1 e também o Sir Ronald Cohen, um dos fundadores da firma privada de investimentos APAX.

O discurso que envolve o BSC trata a realidade dos programas sociais como um mercado: fala-se em um mercado de investimentos sociais, em retorno financeiro, em “players”. O vocabulário que envolve o programa é oriundo do mundo do sistema financeiro e não dos movimentos sociais. Não se menciona em lugar algum palavras como cidadania, democracia e transparência.  Isso pode nos dizer muita coisa sobre os interesses que serão priorizados.

E se a ideia de Cameron é favorecer as iniciativas locais, talvez devesse produzir um desenho institucional mais inovador, que fosse capaz de repensar esse protagonismo da City londrina, símbolo do sistema financeiro inglês. Aliás, uma das declarações do Primeiro Ministro no lançamento do BSC foi a seguinte: “For years, the City has been associated with providing capital to help businesses to expand. Today, this is about supplying capital to help society expand. Just as finance from the City has been essential to help businesses grow and take on the world, so finance from the City is going to be essential to helping tackle our deepest social problems.” Cameron acredita que a solução para os problemas sociais mais profundos está na ajuda que a City poderá ofecer aos indivíduos. Mas a solução pode estar justamente na população nas ruas, por meio de um ativismo social e político, exigindo maior controle em relação aos abusos e distorções advindas da City.

As pontes que isolam as ilhas

Por Laila Maia Galvão

Não é novidade estabelecer a conexão da palavra ilha às noções de fechamento, isolamento, restrição e segregação. Por outro lado, a palavra ponte também pode funcionar como metáfora para as ideias de conexão, abertura, interação e troca. As ilhas precisam de pontes para estar ligadas ao restante do mundo e para diminuir a distância que as separam daquilo que existe ao seu redor.

As cidades brasileiras em geral reproduzem em seu desenho urbano a desigualdade socioeconômica de suas populações. Nessas cidades, criam-se bolhas de riqueza circundadas por bairros de infraestrutura precária.

Brasília, apelidada de ilha da fantasia, com seu plano piloto planejado, possui um dos custos de vida mais altos do Brasil. Ao redor de Brasília, a quilômetros de distância da visão de seus moradores, está localizado o entorno, uma das áreas mais violentas e pobres do Brasil. Em Florianópolis, carinhosamente chamada de ilha da magia, há belas praias, hotéis de luxo, baladas internacionais. Para quem fica do lado de lá, no continente, a história é um pouco diferente… o trajeto de ônibus para usufruir das maravilhas da ilha pode levar mais de duas horas(!).

Nessas cidades, a construção de pontes (literalmente e metaforicamente) é imprescindível. E justamente nessas cidades a construção dessas pontes se tornou problemática. Em Brasília, o governo Roriz foi acusado de desviar recursos da saúde pública do DF, que até hoje se encontra em crise profunda, para construir a superfaturada ponte Juscelino Kubitschek, conhecida também como terceira ponte. Poucos anos após a inauguração, a ponte já apresenta desníveis, oscilações e outros problemas de estrutura.

Em Florianópolis, a ponte Hercílio Luz, famoso cartão-postal da cidade, está interditada desde 1982. A partir de 2004, a ponte passou por obras de restauração, com obras orçadas em quantias que ultrapassam os 200 milhões. Há anos está impedida a passagem do cidadão. A previsão inicial é de que somente em 2014 as obras estarão concluídas, mas a prorrogação do prazo já é quase certa. Se não bastassem as obras milionárias e intermináveis, o Diário Catarinense publicou reportagem nessa semana informando que Santa Catarina conseguiu aprovar a maior verba da história da Lei Rouanet para a reforma da Ponte Hercílio Luz. Recursos que poderiam ser destinados a outros projetos culturais agora contribuem para o enorme bolo destinado às obras de uma ponte inoperante. Nada contra a restauração da ponte, que é um dos símbolos da cidade, mas é preciso avaliar de que forma isso será feito – em especial com quais recursos – e como se dará a utilização da ponte após as obras. Uma ponte que não funciona como travessia, pode favorecer ainda mais a segregação.

Dizem por aí que fazer política é derrubar muros e construir pontes. No entanto, as pontes superfaturadas, que desviam dinheiro da saúde e que retiram recursos da cultura, não promovem a integração, mas contribuem para a exclusão. Não são essas as pontes que queremos.