#3 texto da série: Análise de Conjuntura Regional (DF)
O grupo político Brasil & Desenvolvimento traçou, neste início de 2012, o que considera fundamental para qualquer intervenção crítica na realidade: uma análise de conjuntura. Nas semanas anteriores, publicamos análises de conjuntura sobre os contextos internacional e nacional. Nesse post, apresentamos análise da conjuntura do Distrito Federal, sede do grupo, que discute, entre outros problemas, o caos na saúde, a tragédia imobiliária e o rearranjo conservador da política local.
Brasília, 2011: o novo velho caminho
Análise de conjuntura regional (DF)
Grupo Brasil e Desenvolvimento
Os três poderes são um só:
o deles
Nicolas Behr – De Brasiléia Desvairada (1979)
2011 começou sem grandes esperanças de mudanças para Brasília. Sem grandes esperanças de mudanças por parte do Governo do Distrito Federal, que dispõe de importantes instrumentos para produzi-las.
O intenso ano de 2010 mostrou que as forças reacionárias são difíceis de diluir. A queda do ex-governador José Roberto Arruda indicava mudanças, porém retrocedidas já no processo eleitoral subsequente, de onde vieram as primeiras decepções.
As alianças formadas em torno da chapa Novo Caminho, de Agnelo Queiroz, mostraram que o que se propunha “novo” não passava de mera demagogia de um grupo de caminhos há tempos pavimentados com asfalto de má qualidade. A escolha de Tadeu Filippelli para vice surpreendeu os habitantes da Bacia do Paranoá, numa demonstração de que o peemedebismo continuaria sendo recebido com toda a pompa e circunstância no Palácio do Buriti: a governabilidade espanta ideologias, espanta bom-senso e em muitos momentos, afugenta agendas de esquerda, também no Distrito Federal. Governar tem sido obra feita lado a lado do fisiologismo partidário que grassa nas assembleias, como sugere o sistema de coalizões.
Nesse contexto, 2011 não traria grandes surpresas. A inércia na cena política gerou também inércia nas ações do governo: decorrência inafastável do alto preço da governabilidade, para a qual o arranjo de forças nada progressistas, ainda menos de esquerda, parece menosprezar qualquer sinal de mudança.
No DF, como no âmbito federal, o governo que assumiu, coroado de esperanças pelas mudanças tão esperadas pela população, tem deixado para trás sua histórica construção no espectro ideológico e se afogado cada dia mais no drama do pragmatismo engessante.
O caminho dos que se arrogam donos do poder continua o mesmo: saem do Lago Sul, passam pela ponte JK até chegarem à praça do Buriti. Este poder continua nas mãos daqueles que por ele podem pagar.
A tragédia imobiliária
Brasília, com o apoio do governo Agnelo, continua a ilha da fantasia dos especuladores imobiliários e das construtoras. O PDOT-DF (Plano Diretor de Ordenamento Territorial do Distrito Federal) não foi questionado pelo atual governo, tendo sido aprovado de forma obscura, sem qualquer amostra de participação popular, desrespeitando áreas de cerrado, e sendo objeto de várias denúncias de irregularidades, inclusive de deputados dos partidos que hoje compõem a base de sustentação do governo distrital.
O super-empreendimento do Setor Noroeste continua sendo implantado como no governo anterior, conferindo enorme apoio às incorporadoras, disseminando a morte do cerrado e reproduzindo repressão aos movimentos ambientalista, indígena, e de defensores de direitos humanos e urbanos. Reivindicações por um espaço urbano mais justo recebem o tratamento típico das oligarquias – bombas de gás, tiros de balas de borracha, oposição canina dos veículos midiáticos e a reiterada postura estatal de que a terra pertence a quem pagou por ela, e não a quem por ela luta ou nela já vive.
O traçado urbano do Setor Noroeste, defendido como ecológico, permite seis vagas na garagem para cada apartamento, não prevê a implementação de qualquer política de transporte público no novo bairro e impulsiona investimentos em uma área que vai beneficiar exclusivamente as classes sociais mais altas.
Essa política urbana, respaldada no crescimento surreal de alguns segmentos urbanos brasileiros na última década, ignora o sinuoso caminho das bolhas imobiliárias que vão se formando nas capitais brasileiras. É também essa política que ignora a necessária construção coletiva do espaço urbano, levando à subversão da lógica da moradia enquanto direito: onde morar é um privilégio, ocupar só pode se fazer um direito.
Nesse cenário de sufocamento da construção coletiva, e obviamente plural do espaço urbano de Brasília, um sopro de vida foi dado pelos movimentos que lutam pelo direito à moradia, os quais exigem uma visão adequada para a questão do acesso à terra e à moradia na cidade.
O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) iniciou uma forte campanha ainda em 2010, com uma ocupação em Brazlândia: em apenas dois dias, 2500 famílias estiveram organizadas em luta por moradia para a população.
Em 2011, lidando com um Governo que prometera apontar em direção a um novo caminho para a política de ocupação urbana no Distrito Federal, o MTST igualmente não encontrou espaço para negociações: o Governo do DF reprimiu uma nova ocupação do MTST em Ceilândia, tratando movimentos populares e grileiros de terra da mesma maneira. Essa ocupação, que também contou com forte adesão popular, resistiu bravamente por semanas, até ser violentamente reprimida pelo Governo.
No Santuário dos Pajés, a proteção aos interesses das grandes construtoras ganhou contornos ditatoriais com a prisão injustificada de militantes.
E por falar em Santuário, sua existência remonta à própria construção de Brasília, território de uma comunidade multiétnica, espaço genuinamente indígena, fundado sob a esperança de pessoas que buscavam melhores condições de vida na nova capital. A remoção dessa comunidade em prol de investimentos imobiliários de grandes construtoras demonstra que na delimitação geográfica de Brasília, pluralidade e respeito não estão na ordem do dia.
A Terracap, empresa pública do Distrito Federal, continua a conferir à pra lá de cinquentenária Brasília, um formato distante do seu planejamento original, beneficiando-se de inúmeras negociatas com terrenos públicos, magicamente vertidos à sanha do capital especulativo de empreiteiras, como a Emplavi e a Brasal.
Outro fato emblemático sobre a condução das políticas de ocupação urbana é a criação da quadra 901 norte, que pretende transformar uma das poucas áreas centrais ainda vazias do Plano Piloto em um complexo hoteleiro em que a altura máxima permitida para as construções aumentaria de 9,5 para 45 metros. Uma intervenção drástica como essa, na área tombada, carece de estudos urbanísticos sérios, o que jamais foi realizado.
Diante do veto do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e das manifestações de movimentos sociais e cidadãos envolvidos com a temática do patrimônio urbanístico, o governo não mais conseguiu ignorar a participação popular e abandonou o projeto, quando a repercussão negativa já representava uma ameaça suficientemente grande para sua popularidade e sua imagem, diante de grupos de esquerda que apoiaram a candidatura de Agnelo Queiroz.
Distribuição injusta de cidade
Sobre os preparativos para a Copa do Mundo, tema significativo no ano de 2011, não há, infelizmente, muito de positivo a ser dito.
O estádio Mané Garrincha está sendo reconstruído e vai custar 920 milhões aos cofres públicos. Essa soma faraônica poderia, por exemplo, servir para construir algo em torno de 15 mil habitações populares de R$ 65 mil. Para que se tenha ideia do vulto da quantia, 920 milhões é o valor que será injetado no estado do Piauí com o aumento de 77 reais no novo salário mínimo.
E por falar em reforço de distribuição injusta de recursos na cidade, no final do ano os brasilienses foram surpreendidos com a proposta de construçãode uma “esplanada de museus” na região central de Brasília (em um terreno ainda não definido) por meio de uma parceria entre GDF, Ministério da Cultura e iniciativa privada. Como de praxe, sem ter sido feita qualquer consulta popular.
Espaços reservados a cultura são obviamente sempre bem vindos, mas investir recursos em cinco novos museus na área mais bem servida de equipamentos culturais de todo o DF não parece algo sensato, quando temos cidades inteiras do quadradinho com acesso a sequer um teatro.
Além disso, que sentido faz investir em novos museus sem se levar em consideração a situação deplorável em que se encontram os espaços de cultura já implantados no Plano Piloto, como o MAB (Museu de Arte de Brasília), fechado no governo Arruda em 2007, a Fundação Athos Bulcão, desalojada em 2011, e o Cine Brasília, há décadas sem reforma?
O projeto da esplanada dos museus parece mais uma dessas ações de visibilidade desmedida, especialmente concebida no contexto de preparativos para a Copa do Mundo de 2014.
É essa cidade que está no campo de visão dos olhos de turistas esperados para a Copa, dos olhos cifrados de empreendimentos imobiliários que faz invisíveis muitas pessoas, varre populações para as periferias das periferias, onde não raro, a precariedade de serviços públicos e o completo descaso fazem surgir bolsões de miséria e violência urbana. As cidades do Entorno são um exemplo concreto disso.
Os carros, o caos e alguma esperança
2011 também foi o ano do caos no trânsito em Brasília. A percepção é cada vez maior: se locomover no Distrito Federal é cada dia mais problemático. O significativo aumento da renda do brasiliense, que acompanhou o crescimento da renda média do brasileiro nos últimos dez anos, e os subsídios à indústria de automóveis, aumentaram o acesso a esses bens de consumo.
E, como bem lembra a professora Sylvia Ficher, na lógica do urbanismo rodoviarista, o sonho da população é andar motorizada. Em terra de rodovias, quem tem carro é (ou pelo menos se vê na condição de) rei!
O excesso de carros é uma ameaça à paisagem do Plano Piloto e à sua qualidade ambiental. Áreas verdes são transformadas em estacionamentos, árvores são cortadas para garantir mais vagas nos blocos residenciais e comerciais.
Com os constantes congestionamentos, a dificuldade de se locomover em solo urbano finalmente chegou às classes mais altas do DF. Perder horas do seu dia para sair de um ponto e chegar a outro não é mais “privilégio” de quem depende do transporte público: as classes média e alta motorizadas também passam a viver o drama das fileiras de trânsito em marcha lenta e isso sem dúvida foi fator relevante para que o governo começasse a agir. Quando o confortável reinado da aristocracia motorizada é ameaçado pelos emergentes motorizados, o Estado se vê pressionado por diferentes flancos.
E é exatamente daí que vêm as “boas” notícias do final de 2011.
Finalmente o governo do DF propõe, em seus discursos, a integração do transporte público. Com um bilhete, que terá validade de tempo determinada, o usuário do sistema de transporte poderá utilizar diversas modalidades: metrô, ônibus, zebrinha. Há ainda a proposta, cercada de dúvidas, de implementação da “Tarifa Zero” para os sistemas de ônibus que circulam no Distrito Federal.
Muito mais que um instrumento de arrebanhamento eleitoral, a gratuidade tarifária ora em discussão pode se tornar um importante benefício à população mais pobre, numericamente a principal usuária desses sistemas: deles depende para trabalhar e locomover-se entre cidades-satélites e o Plano Piloto.
Outras incríveis inovações serão a licitação das linhas de ônibus (sim, é sério) e a criação de faixas exclusivas para ônibus e de uma malha de ciclovias. São ainda promessas pontuais que merecem, contudo, ser comemoradas na unidade federativa com maior PIB per capita do país.
A tragédia da saúde
A questão da saúde continua sem respostas. Anos de problemas estruturais de sucateamento da saúde pública não se resolvem em um ano de governo. Porém, requalificar o sistema de saúde do GDF foi a principal bandeira de campanha do governador, e os avanços ainda são tímidos. Embora relevante a contratação de profissionais de saúde realizada, há ainda muito a ser feito.
O governador Agnelo decretou situação de emergência dos serviços públicos de saúde no Distrito Federal, tendo alegado que o sucate era total – servidores sem receber, farmácias populares e de alto custo com estoque zerado, hospitais sem manutenção, postos de saúde caindo aos pedaços.
Diante desse cenário, garantiu que empreenderia esforços para sanar os enormes problemas existentes. Nunca é demasiado lembrar, já na campanha eleitoral de 2010, o médico candidato a governador disse que a saúde seria prioridade de seu governo.
De fato, o governo Agnelo aumentou os gastos com saúde – de 84 milhões investidos em 2010, passou para 126 milhões, em 2011 – e contratou mais de 4 mil funcionários para o setor.
Mas os motivos para comemoração param por aí.
O governo atual se aproximou muito dos setores privados da saúde, abrindo mão de avanços no fortalecimento do Sistema Único de Saúde – SUS. Desde o início, a partir da nomeação do Secretário de Saúde do DF, Rafael Barbosa, proprietário de laboratório, ficou evidente que o compromisso do governo Agnelo em relação à saúde seria limitado e perigosamente próximo ao setor privado.
Várias medidas confirmaram o prognóstico desolador da situação da saúde: não houve diálogo com o movimento grevista dos servidores no mês de junho passado – que paralisou mais de 10 mil funcionários por quase um mês; o atendimento nos postos de saúde, especialmente na Estrutural, foi altamente burocratizado e deixou de atender às demandas da comunidade; a rede de atenção à saúde mental foi enxugada. Além disso, das 10 novas unidades de pronto-atendimento prometidas no início do ano passado, apenas a de Samambaia foi instalada e, em seguida, terceirizada com o claro intuito de cortar gastos.
Desse quadro dramático, percebe-se a inatividade do atual governo na promoção da ampliação da rede de atenção básica, que nem mesmo no plano do discurso tem sido lembrada. O fortalecimento do SUS não é prioridade, e infelizmente o tortuoso caminho para a privatização dos serviços de saúde, no GDF, tem cada vez mais despontado como uma realidade.
Uma zebra vem da direita
Uma triste surpresa política em 2011 foi a eleição de uma chapa de direita para o Diretório Central dos Estudantes Honestino Guimarães, da Universidade de Brasília.
A vitória da Chapa Aliança Pela Liberdade foi resultado da fragmentação das esquerdas na universidade, representadas por seis chapas. No centro de sua plataforma não está a defesa de um projeto popular, democrático e socialmente referenciado para a UnB, mas uma concepção privatista, excludente e vigilantista, que se reflete na prioridade para a defesa da integração com o mercado (nenhuma palavra foi dita, nos discursos da chapa vencedora da campanha, sobre integração com movimentos sociais que lutam contra as desigualdades estruturantes da sociedade brasileira, umbilicalmente ligadas aos problemas e desafios da educação) e na defesa da PM no campus como panaceia para o problema da insegurança.
Os movimentos de esquerda da universidade têm, muitas vezes, falhado em demonstrar que preocupações imediatas dos estudantes (do tipo papel higiênico no banheiro, professor em sala de aula e livros na biblioteca) são fundamentais ao cumprimento do papel da universidade, e por isso devem ser priorizadas, mas que soluções efetivas exigem uma atitude de politização, que questiona as raízes dos problemas e busca promover articulação ampla para enfrentá-los. Não se tem tido sucesso em mostrar que os mais graves problemas da universidade – carência de verbas, de estrutura, isolamento com relação à sociedade, corporativismo e mediocridade em vários níveis – são condicionados por realidades sociais mais amplas que também é papel do movimento estudantil confrontar.
Se a postura do movimento estudantil de assumir posicionamentos políticos com autonomia deve ser valorizada (e não rechaçada, tal como faz a atual gestão do DCE), é porque ela é ferramenta de luta pelos interesses dos estudantes, mas não apenas por isso: trata-se, também, da importância de afirmar o movimento estudantil como meio para que os estudantes organizem-se coletivamente não apenas para defender pautas corporativistas, mas para articularem sua voz para transformar a sociedade, segundo os seus princípios e sonhos.
Se os partidos políticos tentam instrumentalizar o movimento estudantil, o caminho para contornar isso não é a vã tentativa de fugir a temas “externos” à universidade. As desigualdades de classe e as discriminações étnico-raciais, de gênero e orientação sexual contra a qual o movimento estudantil de esquerda luta, perpassam o ambiente universitário e sua relação com o ambiente “externo”; a segregação socioespacial atravessa a cidade e o campus, e condiciona os problemas de insegurança; e por aí vai.
Ademais, quando entidades da sociedade civil assumem um discurso pseudotecnicista e desprezam a política a pretexto de não serem instrumentalizadas pelos partidos, a consequência é reforçar a política como esfera exclusiva de ação dos partidos, a não ser quando se trate da defesa de pautas corporativistas por cada grupo social.
Um novo caminho
O ano de 2011 deixou claro que Brasília precisa de um caminho realmente novo.
A esquerda, nesse contexto, para que seja direcionadora de novos rumos, deve saber aglutinar, articular. Articular e propor pautas de interesses comuns, centros de gravitação política comuns, que justifiquem a luta pela emancipação popular e a transformação do Distrito Federal num ambiente onde direitos não tenham a acepção de privilégios, onde serviços públicos existam e sejam efetivamente públicos, onde invisíveis ganhem visibilidade, voz e participação num corpo social capaz de atender a suas necessidades primordiais.
Encontrar o eixo comum para vários movimentos dispersos é o caminho para impedir que forças conservadoras continuem passando seus potentes tratores sobre o planalto central, transformando em faroeste esse charme caboclo.