Brasília, 2011: o novo velho caminho

#3 texto da série: Análise de Conjuntura Regional (DF)

O grupo político Brasil & Desenvolvimento traçou, neste início de 2012, o que considera fundamental para qualquer intervenção crítica na realidade: uma análise de conjuntura. Nas semanas anteriores, publicamos análises de conjuntura  sobre os contextos internacional e nacional. Nesse post, apresentamos análise da conjuntura do Distrito Federal, sede do grupo, que discute, entre outros problemas, o caos na saúde, a tragédia imobiliária e o rearranjo conservador da política local.

Brasília, 2011: o novo velho caminho

Análise de conjuntura regional (DF)

Grupo Brasil e Desenvolvimento

Os três poderes são um só:

o deles

Nicolas Behr – De Brasiléia Desvairada (1979)

2011 começou sem grandes esperanças de mudanças para Brasília. Sem grandes esperanças de mudanças por parte do Governo do Distrito Federal, que dispõe de importantes instrumentos para produzi-las.

O intenso ano de 2010 mostrou que as forças reacionárias são difíceis de diluir. A queda do ex-governador José Roberto Arruda indicava mudanças, porém retrocedidas já no processo eleitoral subsequente, de onde vieram as primeiras decepções.

As alianças formadas em torno da chapa Novo Caminho, de Agnelo Queiroz, mostraram que o que se propunha “novo” não passava de mera demagogia de um grupo de caminhos há tempos pavimentados com asfalto de má qualidade. A escolha de Tadeu Filippelli para vice surpreendeu os habitantes da Bacia do Paranoá, numa demonstração de que o peemedebismo continuaria sendo recebido com toda a pompa e circunstância no Palácio do Buriti: a governabilidade espanta ideologias, espanta bom-senso e em muitos momentos, afugenta agendas de esquerda, também no Distrito Federal. Governar tem sido obra feita lado a lado do fisiologismo partidário que grassa nas assembleias, como sugere o sistema de coalizões.

Nesse contexto, 2011 não traria grandes surpresas. A inércia na cena política gerou também inércia nas ações do governo: decorrência inafastável do alto preço da governabilidade, para a qual o arranjo de forças nada progressistas, ainda menos de esquerda, parece menosprezar qualquer sinal de mudança.

No DF, como no âmbito federal, o governo que assumiu, coroado de esperanças pelas mudanças tão esperadas pela população, tem deixado para trás sua histórica construção no espectro ideológico e se afogado cada dia mais no drama do pragmatismo engessante.

O caminho dos que se arrogam donos do poder continua o mesmo: saem do Lago Sul, passam pela ponte JK até chegarem à praça do Buriti. Este poder continua nas mãos daqueles que por ele podem pagar.

A tragédia imobiliária

Brasília, com o apoio do governo Agnelo, continua a ilha da fantasia dos especuladores imobiliários e das construtoras. O PDOT-DF (Plano Diretor de Ordenamento Territorial do Distrito Federal) não foi questionado pelo atual governo, tendo sido aprovado de forma obscura, sem qualquer amostra de participação popular, desrespeitando áreas de cerrado, e sendo objeto de várias denúncias de irregularidades, inclusive de deputados dos partidos que hoje compõem a base de sustentação do governo distrital.

O super-empreendimento do Setor Noroeste continua sendo implantado como no governo anterior, conferindo enorme apoio às incorporadoras, disseminando a morte do cerrado e reproduzindo repressão aos movimentos ambientalista, indígena, e de defensores de direitos humanos e urbanos. Reivindicações por um espaço urbano mais justo recebem o tratamento típico das oligarquias – bombas de gás, tiros de balas de borracha, oposição canina dos veículos midiáticos e a reiterada postura estatal de que a terra pertence a  quem pagou por ela, e não a quem  por ela luta ou nela já vive.

O traçado urbano do Setor Noroeste, defendido como ecológico, permite seis vagas na garagem para cada apartamento, não prevê a implementação de qualquer política de transporte público no novo bairro e impulsiona investimentos em uma área que vai beneficiar exclusivamente as classes sociais mais altas.

Essa política urbana, respaldada no crescimento surreal de alguns segmentos urbanos brasileiros na última década, ignora o sinuoso caminho das bolhas imobiliárias que vão se formando nas capitais brasileiras. É também essa política que ignora a necessária construção coletiva do espaço urbano, levando à subversão da lógica da moradia enquanto direito: onde morar é um privilégio, ocupar só pode se fazer um direito.

Nesse cenário de sufocamento da construção coletiva,  e obviamente plural do espaço urbano de Brasília, um sopro de vida foi dado pelos movimentos que lutam pelo direito à moradia, os quais exigem uma visão adequada para a questão do acesso  à terra e à moradia na cidade.

O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) iniciou uma forte campanha ainda em 2010, com uma ocupação em Brazlândia: em apenas dois dias, 2500 famílias estiveram organizadas em luta por moradia para a população.

Em 2011, lidando com um Governo que prometera apontar em direção a um novo caminho para a política de ocupação urbana no Distrito Federal, o MTST igualmente não encontrou espaço para negociações: o Governo do DF reprimiu uma nova ocupação do MTST em Ceilândia, tratando movimentos populares e grileiros de terra da mesma maneira.  Essa ocupação, que também contou com forte adesão popular, resistiu bravamente por semanas, até ser violentamente reprimida pelo Governo.

No Santuário dos Pajés, a proteção aos interesses das grandes construtoras ganhou contornos ditatoriais com a prisão injustificada de militantes.

E por falar em Santuário, sua existência remonta à própria construção de Brasília, território de uma comunidade multiétnica, espaço genuinamente indígena, fundado sob a esperança de pessoas que buscavam melhores condições de vida na nova capital. A remoção dessa comunidade em prol de investimentos imobiliários de grandes construtoras demonstra que na delimitação geográfica de Brasília, pluralidade e respeito não estão na ordem do dia.

A Terracap, empresa pública do Distrito Federal, continua a conferir à pra lá de cinquentenária Brasília, um formato distante do seu planejamento original, beneficiando-se de inúmeras negociatas com terrenos públicos, magicamente vertidos à sanha do capital especulativo de empreiteiras, como a Emplavi e a Brasal.

Outro fato emblemático sobre a condução das políticas de ocupação urbana é a criação da quadra 901 norte, que pretende transformar uma das poucas áreas centrais ainda vazias do Plano Piloto em um complexo hoteleiro em que a altura máxima permitida para as construções aumentaria de 9,5 para 45 metros. Uma intervenção drástica como essa, na área tombada, carece de estudos urbanísticos sérios, o que jamais foi realizado.

Diante do veto do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) e das manifestações de movimentos sociais e cidadãos envolvidos com a temática do patrimônio urbanístico, o governo não mais conseguiu ignorar a participação popular e abandonou o projeto, quando a repercussão negativa já representava uma ameaça suficientemente grande para sua popularidade e sua imagem, diante de grupos de esquerda que apoiaram a candidatura de Agnelo Queiroz.

Distribuição injusta de cidade

Sobre os preparativos para a Copa do Mundo, tema significativo no ano de 2011, não há, infelizmente, muito de positivo a ser dito.

O estádio Mané Garrincha está sendo reconstruído e vai custar 920 milhões aos cofres públicos. Essa soma faraônica poderia, por exemplo, servir para construir algo em torno  de 15 mil habitações populares de R$ 65 mil. Para que se tenha ideia do vulto da quantia, 920 milhões é o valor que será injetado no estado do Piauí com o aumento de 77 reais no novo salário mínimo.

E por falar em reforço de distribuição injusta de recursos na cidade, no final do ano os brasilienses foram surpreendidos com a proposta de construçãode uma “esplanada de museus” na região central de Brasília (em um terreno ainda não definido) por meio de uma parceria entre GDF, Ministério da Cultura e iniciativa privada. Como de praxe, sem ter sido feita qualquer consulta popular.

Espaços reservados a cultura são obviamente sempre bem vindos, mas investir recursos em cinco novos museus na área mais bem servida de equipamentos culturais de todo o DF não parece algo sensato, quando temos cidades inteiras do quadradinho com acesso a sequer um teatro.

Além disso, que sentido faz investir em novos museus  sem se levar em consideração a situação deplorável em que se encontram os espaços de cultura já implantados no Plano Piloto, como o MAB (Museu de Arte de Brasília), fechado no governo Arruda em 2007, a Fundação Athos Bulcão, desalojada em 2011, e o Cine Brasília, há décadas sem reforma?

O projeto da esplanada dos museus parece mais uma dessas ações de visibilidade desmedida, especialmente concebida no contexto de preparativos para a Copa do Mundo de 2014.

É essa cidade que está no campo de visão dos olhos de turistas esperados para a Copa, dos olhos cifrados de empreendimentos imobiliários que faz invisíveis muitas pessoas, varre populações para as periferias das periferias, onde não raro, a precariedade de serviços públicos e o completo descaso fazem surgir bolsões de miséria e violência urbana. As cidades do Entorno são um exemplo concreto disso.

Os carros, o caos e alguma esperança

2011 também foi o ano do caos no trânsito em Brasília. A percepção é cada vez maior: se locomover no Distrito Federal é cada dia mais problemático. O significativo aumento da renda do brasiliense, que acompanhou o crescimento da renda média do brasileiro nos últimos dez anos, e os subsídios à indústria de automóveis, aumentaram o acesso a esses bens de consumo.

E, como bem lembra a professora Sylvia Ficher, na lógica do urbanismo rodoviarista, o sonho da população é andar motorizada. Em terra de rodovias, quem tem carro é (ou pelo menos se vê na condição de) rei!

O excesso de carros é uma ameaça à paisagem do Plano Piloto e à sua qualidade ambiental. Áreas verdes são transformadas em estacionamentos, árvores são cortadas para garantir mais vagas nos blocos residenciais e comerciais.

Com os constantes congestionamentos, a dificuldade de se locomover em solo urbano finalmente chegou às classes mais altas do DF. Perder horas do seu dia para sair de um ponto e chegar a outro não é mais “privilégio” de quem depende do transporte público: as classes média e alta motorizadas também passam a viver o drama das fileiras de trânsito em marcha lenta e isso sem dúvida foi fator relevante para que o governo começasse a agir. Quando o confortável reinado da aristocracia motorizada é ameaçado pelos emergentes motorizados, o Estado se vê pressionado por diferentes flancos.

E é exatamente daí que vêm as “boas” notícias do final de 2011.

Finalmente o governo do DF propõe, em seus discursos, a integração do transporte público. Com um bilhete, que terá validade de tempo determinada, o usuário do sistema de transporte poderá utilizar diversas modalidades: metrô, ônibus, zebrinha. Há ainda a proposta, cercada de dúvidas, de implementação da “Tarifa Zero” para os sistemas de ônibus que circulam no Distrito Federal.

Muito mais que um instrumento de arrebanhamento eleitoral, a gratuidade tarifária ora em discussão pode se tornar um importante benefício à população mais pobre, numericamente a principal usuária desses sistemas: deles depende para trabalhar e locomover-se entre cidades-satélites e o Plano Piloto.

Outras incríveis inovações serão a licitação das linhas de ônibus (sim, é sério) e a criação de faixas exclusivas para ônibus e de uma malha de ciclovias. São ainda promessas pontuais que merecem, contudo, ser comemoradas na unidade federativa com maior PIB per capita do país.

A tragédia da saúde

A questão da saúde continua sem respostas. Anos de problemas estruturais de sucateamento da saúde pública não se resolvem em um ano de governo. Porém, requalificar o sistema de saúde do GDF foi a principal bandeira de campanha do governador, e os avanços ainda são tímidos. Embora relevante a contratação de profissionais de saúde realizada, há ainda muito a ser feito.

O governador Agnelo decretou situação de emergência dos serviços públicos de saúde no Distrito Federal, tendo alegado que o sucate era total – servidores sem receber, farmácias populares e de alto custo com estoque zerado, hospitais sem manutenção, postos de saúde caindo aos pedaços.

Diante desse cenário, garantiu que empreenderia esforços para sanar os enormes problemas existentes. Nunca é demasiado lembrar, já na campanha eleitoral de 2010, o médico candidato a governador disse que a saúde seria prioridade de seu governo.

De fato, o governo Agnelo aumentou os gastos com saúde – de 84 milhões investidos em 2010, passou para 126 milhões, em 2011 – e contratou mais de 4 mil funcionários para o setor.

Mas os motivos para comemoração param por aí.

O governo atual se aproximou muito dos setores privados da saúde, abrindo mão de avanços no fortalecimento do Sistema Único de Saúde – SUS. Desde o início, a partir da nomeação do Secretário de Saúde do DF, Rafael Barbosa, proprietário de laboratório, ficou evidente que o compromisso do governo Agnelo em relação à saúde seria limitado e perigosamente próximo ao setor privado.

Várias medidas confirmaram o prognóstico desolador da situação da saúde: não houve diálogo com o movimento grevista dos servidores no mês de junho passado – que paralisou mais de 10 mil funcionários por quase um mês; o atendimento nos postos de saúde, especialmente na Estrutural, foi altamente burocratizado e deixou de atender às demandas da comunidade; a rede de atenção à saúde mental foi enxugada. Além disso, das 10 novas unidades de pronto-atendimento prometidas no início do ano passado, apenas a de Samambaia foi instalada e, em seguida, terceirizada com o claro intuito de cortar gastos.

Desse quadro dramático, percebe-se a inatividade do atual governo na promoção da ampliação da rede de atenção básica, que nem mesmo no plano do discurso tem sido lembrada. O fortalecimento do SUS não é prioridade, e infelizmente o tortuoso caminho para a privatização dos serviços de saúde, no GDF, tem cada vez mais despontado como uma realidade.

Uma zebra vem da direita

Uma triste surpresa política em 2011 foi a eleição de uma chapa de direita para o Diretório Central dos Estudantes Honestino Guimarães, da Universidade de Brasília.

A vitória da Chapa Aliança Pela Liberdade foi resultado da fragmentação das esquerdas na universidade, representadas por seis chapas. No centro de sua plataforma não está a defesa de um projeto popular, democrático e socialmente referenciado para a UnB, mas uma concepção privatista, excludente e vigilantista, que se reflete na prioridade para a defesa da integração com o mercado (nenhuma palavra foi dita, nos discursos da chapa vencedora da campanha, sobre integração com movimentos sociais que lutam contra as desigualdades estruturantes da sociedade brasileira, umbilicalmente ligadas aos problemas e desafios da educação) e na defesa da PM no campus como panaceia para o problema da insegurança.

Os movimentos de esquerda da universidade têm, muitas vezes, falhado em demonstrar que preocupações imediatas dos estudantes (do tipo papel higiênico no banheiro, professor em sala de aula e livros na biblioteca) são fundamentais ao cumprimento do papel da universidade, e por isso devem ser priorizadas, mas que soluções efetivas exigem uma atitude de politização, que questiona as raízes dos problemas e busca promover articulação ampla para enfrentá-los. Não se tem tido sucesso em mostrar que os mais graves problemas da universidade – carência de verbas, de estrutura, isolamento com relação à sociedade, corporativismo e mediocridade em vários níveis – são condicionados por realidades sociais mais amplas que também é papel do movimento estudantil confrontar.

Se a postura do movimento estudantil de assumir posicionamentos políticos com autonomia deve ser valorizada (e não rechaçada, tal como faz a atual gestão do DCE), é porque ela é ferramenta de luta pelos interesses dos estudantes, mas não apenas por isso: trata-se, também, da importância de afirmar o movimento estudantil como meio para que os estudantes organizem-se coletivamente não apenas para defender pautas corporativistas, mas para articularem sua voz para transformar a sociedade, segundo os seus princípios e sonhos.

Se os partidos políticos tentam instrumentalizar o movimento estudantil, o caminho para contornar isso não é a vã tentativa de fugir a temas “externos” à universidade. As desigualdades de classe e as discriminações étnico-raciais, de gênero e orientação sexual contra a qual o movimento estudantil de esquerda luta, perpassam o ambiente universitário e sua relação com o ambiente “externo”; a segregação socioespacial atravessa a cidade e o campus, e condiciona os problemas de insegurança; e por aí vai.

Ademais, quando entidades da sociedade civil assumem um discurso pseudotecnicista e desprezam a política a pretexto de não serem instrumentalizadas pelos partidos, a consequência é reforçar a política como esfera exclusiva de ação dos partidos, a não ser quando se trate da defesa de pautas corporativistas por cada grupo social.

Um novo caminho

O ano de 2011 deixou claro que Brasília precisa de um caminho realmente novo.

A esquerda, nesse contexto, para que seja direcionadora de novos rumos, deve saber aglutinar, articular. Articular e propor pautas de interesses comuns, centros de gravitação política comuns, que justifiquem a luta pela emancipação popular e a transformação do Distrito Federal num ambiente onde direitos não tenham a acepção de privilégios, onde serviços públicos existam e sejam efetivamente públicos, onde invisíveis ganhem visibilidade, voz e participação num corpo social capaz de atender a suas necessidades primordiais.

Encontrar o eixo comum para vários movimentos dispersos é o caminho para impedir que forças conservadoras continuem passando seus potentes tratores sobre o planalto central, transformando em faroeste esse charme caboclo.

Debate sobre direitos autorais: do Creative Commons à modernização da LDA

Por João Telésforo Medeiros Filho

Discussão imperdível para quem estiver em Brasília nesta quarta à noite! No Balaio Café, a partir das 19h30, com participação, entre outros, do jurista Paulo Rená (o famoso @prenass), que, além de hiperblogueiro e grande parceiro do B&D, foi gestor da proposta governamental do Marco Civil da Internet no Brasil.

Entenda aqui o que é a licença creative commons.

Se você está por fora da polêmica envolvendo a recente retirada dessa licença do site do Ministério da Cultura, clique aqui.

Para ler a carta de representantes da sociedade civil à Presidenta Dilma e à Ministra da Cultura Ana de Hollanda, aqui.

A cultura como espaço de transformação social

Por Gabriel Santos Elias

Quando falo de transformação, falo no sentido de redução de desigualdades econômicas, políticas e de reconhecimento. Da articulação de uma nova organização social que inclua mais e mais pessoas no espaço público e na tomada de decisões, falo de uma política mais justa e mais humana. Essa disputa política deve ser feita em todas as frentes e acredito que a cultura é um espaço privilegiado de disputa política por uma transformação profunda da nossa sociedade. Assim, falo da produção, para constante reprodução e adaptação, de uma nova cultura, dinâmica e que avance na conquista de nossos ideais para a sociedade

Fortemente influenciados pelo enquadramento da mídia, temos uma imagem negativa da política representativa. Como conseqüência, muitas vezes escolhemos a apatia e desinteresse ou a eterna desilusão de quem se preocupa. Isso ocorre pela centralidade que damos ao papel do Estado e dos nossos representantes nessa transformação. A cada eleição temos esperança de que algo finalmente possa dar certo, sendo que a história normalmente nos mostra o contrário.

Devemos reconhecer, sim, a importância da disputa política institucional, aquela que é feita na luta pela vitória em eleições, construção de políticas públicas em instituições estatais e em instituições da sociedade civil, como ONGs e Associações. Mas é importante ter em mente que somente esses mecanismos institucionais não são capazes de realizar a transformação que queremos. Temos que transformar a cultura política da nossa sociedade juntamente com o Estado a que nos submetemos, organizamos e disputamos para também transformá-lo.

Dois problemas são os que mais limitam a transformação social que desejamos: a restrição de participantes do processo político e no debate público e as práticas viciadas que estes participantes sustentam.

Pois a cultura é um importante espaço de transformação social justamente por construir um caminho para resolver esses problemas, atraindo mais pessoas para o debate público, por sua abordagem diferenciada dos temas; e incentivando a criatividade política, através de práticas inovadoras, facilitadas pela maior diversidade de novos atores no espaço público.

A cultura é um espaço naturalmente mais atrativo para pessoas que sofrem uma justificada resistência com a política do púlpito, dos longos discursos, dos vícios de linguagem em palavras e siglas difíceis de entender. A cultura é diversa e dialoga com o cotidiano e com interesses das pessoas nela inseridas, seja na MPB, no rap, funk, grafitti, capoeira ou qualquer outra forma de expressão cultural. Essa diversidade deve ser aproveitada para incluir e ampliar também a diversidade de vozes no debate sobre os problemas da nossa sociedade e as possibilidades de mudança.

Ao mesmo tempo, a cultura é um espaço de criatividade. A inclusão de mais pessoas e a maior diversidade de meios de interação propiciam a inovação das práticas bem como uma reflexão diferente, mais profunda e ligada à realidade que essas pessoas vivem. A inovação e a criatividade geram uma forma diferente de fazer política que atrai mais pessoas, tornando o ambiente ainda mais criativo e atrativo.

É estabelecido, assim, um ciclo virtuoso que inclui cada vez mais pessoas no debate público trazendo novas idéias, o que inova a prática política e na ação pela transformação, aumentando o potencial do povo para a autodeterminação de seu futuro através da construção coletiva do poder popular.

O resultado dessa transformação poderá ser visto nas urnas e nas instituições políticas, mas como reflexo de uma transformação inserida no nosso cotidiano, através dos valores que estabelecemos, das práticas que sustentamos e das mudanças que buscamos na sociedade.

Twitter: @GSantelli

Para a superação do ensino jurídico colonizado: à integração latino-americana!

Por João Telésforo Medeiros Filho

Subversiva, a XVI Semana Jurídica da UnB. Sempre em perspectiva de despudorada contestação ao status quo político, econômico e social, o Centro Acadêmico promoveu debates sobre questões altamente relevantes tais quais a do endividamento público como obstáculo ao direito ao desenvolvimento[1], a luta de minorias (?)[2] por reconhecimento e as leis de anistia no contexto da transição democrática. O maior dos desafios ao conservador senso comum dominante, no entanto, consistiu em propor a discussão de todos esses problemas no âmbito e na perspectiva da América Latina, tema geral do evento.

Trata-se de heresia contra o arraigado hábito brasileiro de não perceber senão o “Norte” “desenvolvido” – Europa Ocidental e Estados Unidos, essencialmente – como o outro com o qual podemos aprender a pensar melhor sobre nós mesmos. No campo do direito, reproduz-se essa ordem: apenas as sagradas instituições desses países são dignas de serem conhecidas, estudadas a fundo e reproduzidas aqui, e os seus autores são os únicos que merecem o status de clássicos ou, para os mais românticos, “gênios”.

Ainda graduandos, estudamos a história do direito europeu em detalhes (nos limites permitidos em matérias da graduação), desde os píncaros da glória do Direito Romano até o seu fulgurante renascimento na Idade Média ou no pandectismo do século XIX, passando pelo direito canônico e pela constitucionalização do Estado Moderno. “Moderno”, aliás, é uma palavra que quase sempre nos remete à Europa, a mãe da Modernidade que tanto ocupa nossas reflexões – e, claro, também a pátria dos nossos queridos autores pós-modernos (e que não se cometa o inconveniente de lembrar que o francês Derrida nasceu na Argélia).

No painel “Novos Rumos do Constitucionalismo na América Latina”, que abriu a Semana Jurídica, o professor José Ribas propôs a superação desse ser colonial que nos impõe de antemão o olhar fascinado e embasbacado diante de instituições e pensamentos que vêm da metrópole, bem assim o desprezo pelas experiências e reflexões produzidas na colônia. Dar atenção ao que se faz e pensa em outras colônias que não a nossa, então, faz menos sentido ainda: é ato que pode receber, na melhor das hipóteses, um sorriso de condescendente simpatia diante de preferências exóticas.

Aprendemos, já na graduação na UnB, a diferenciar Rule of Law, Rechsstaat e État de Droit – saberemos, no entanto, mencionar qualquer diferença entre os processos históricos de formação do Estado boliviano e do equatoriano? Estudamos precedentes da Supreme Court, e com que alegria mostramos que sabemos falar Bundesverfassungsgericht!, mas ignoramos a rica jurisprudência das Supremas Cortes da Argentina e Colômbia, ou ainda a inovadora experiência do Tribunal Constitucional boliviano, cujos membros agora serão eleitos diretamente pela população – um paradoxo diante da função contramajoritária classicamente atribuída pelo constitucionalismo ao Judiciário e às Cortes Supremas, mas talvez uma possibilidade promissora de resposta aos críticos do judicial review. Porém, pensar os paradoxos,  potenciais democráticos e riscos de experiências inovadoras certamente não é papel da universidade, e sim reproduzir mantras doutrinários importados de além-mar. Depois que algum americano ou alemão se pronunciar sobre esse caso boliviano, aí sim estaremos autorizados a comentá-lo – com as devidas reverências ao seu comentador pioneiro, ocupando-nos mais de divulgá-lo do que de analisarmos por nós mesmos a experiência do nosso país vizinho. Por ora, é melhor seguir colocando no balaio do rótulo “chavista” os experimentos democráticos diversos que têm sido feitos por países como Bolívia e Equador.

Não se quer aqui negar que temos muito a aprender com as riquíssimas experiências do direito dos países do Norte. Tampouco aderimos a críticas chinfrins como as que por vezes se faz a teorias como a de Habermas, afirmando que ele seria inadequado a estudos feitos no Brasil porque seus supostos de racionalidade comunicativa foram feitos para pensar a realidade da Europa, mas não podem se aplicar à nossa nação, com seus 14 milhões de analfabetos. Além de revelar profundo desconhecimento do que significa o princípio normativo da racionalidade comunicativa proposto por esse autor, o pior defeito de tal consideração é manter-se refém da idealização colonial da Europa.

Não há razão para rechaçarmos o Norte. Trata-se, no entanto, de desnaturalizá-lo como o nosso norte, na medida em que afirmamos a existência de outras experiências que merecem ser estudadas – não como exóticas, mas sim fundamentais à compreensão de nós mesmos e à nossa capacidade de imaginar realidades alternativas e pensar inovações. Não se trata de nos furtarmos ao debate universal com autores da Europa e América do Norte, mas de se deixar no passado o complexo de vira-lata de que falava Nelson Rodrigues, e valorizar o gênio de pensadores latino-americanos não somente na condição de comentadores do que vem de alhures, mas como capazes de inovar naquele debate universal – em vez de aceitar sua originalidade apenas em âmbito local, provinciano. Exótico, sim, seria prosseguir com a mistificação de pensar o direito brasileiro no contexto da Modernidade omitindo o fato crucial da nossa condição de Modernidade periférica[3].

Pensar a América Latina, pensar com os outros latino-americanos, é resgatar a nossa condição comum de colônia, de periferia do sistema capitalista e de Estados, é fazer aflorarem raízes comuns dos nossos processos históricos marcados pela exclusão social, violência, opressão – mas também resistência e criação. O professor chileno Cláudio Nash, na sua palestra no painel de abertura da Semana Jurídica, apontou a permanência dessa exclusão como um dos grandes desafios ao constitucionalismo latino-americano. Será que a integração latino-americana – política, econômica e cultural – não poderá ser uma das respostas a esse desafio? A nossa desunião não poderá ser um dos fatores de sua continuidade?

Paulo Freire, na Pedagogia do Oprimido, explicava que a divisão é uma das características típicas do antidiálogo, modo de (não-)comunicação estratégico da dominação. Com efeito, sabe-se que nenhum déspota aprova reuniões entre seus súditos; melhor mantê-los separados, calados e desconfiados entre si, para que não conspirem contra o poder comum que os oprime. Na lição magistral de Tocqueville:

“O despotismo, que por natureza é suspeitoso, vê no isolamento dos homens a medida mais certa da sua própria permanência e via de regra dedica todos os seus cuidados a isolá-los. Não há vício do coração humano que tanto concorde com ele quanto o egoísmo: um déspota perdoa facilmente aos governados o fato de não o amarem, desde que não se amem entre si.”[4]

Cabe indagar: serão gratuitas a desunião e mesmo a rivalidade existente entre os países latino-americanos? A quem interessa alimentá-las?

O antidiálogo que impõe uma barreira de surdez e cegueira aos brasileiros diante da América Latina encontra no sistema de educação formal um local privilegiado de reprodução. Em palestra sobre a obra de Paulo Freire, Aldo Vannucchi já dizia, a respeito desse gênero de dominação:

“(…) a pior forma de antidiálogo e a que é mais comum nas escolas, na educação, é a invasão cultural. É a coisa que mais se faz em termos de antidiálogo no país. (…) Há invasão cultural também da minoria dominante sobre a maioria, por exemplo, estudantil. Fazer com que o estudante estude as coisas, o conteúdo no prisma, no enfoque que interessa à minoria.”[5]

Comunicar-nos com a comunidade jurídica dos nossos países vizinhos em torno dos problemas que nos afligem é, pois, um ato de rebeldia contra os muros que foram construídos para nos manter separados e em antidiálogo apenas com as metrópoles. Com a XVI Semana Jurídica, o Centro Acadêmico de Direito da UnB deu um passo contra-hegemônico rumo à união latino-americana – unidade que não requer homogeneização, pelo contrário, pois queremos precisamente evitar o desperdício das nossas experiências (para lembrar Boaventura de Sousa Santos, evocado algumas vezes pelo professor Ribas na sua palestra) – e à consolidação de um pensamento jurídico desde a América Latina.

Alguém poderá objetar que não damos tanta atenção ao que se pensa por aqui, entre os nossos hermanos, simplesmente porque não haveria produção de qualidade, salvo uma ou outra exceção. Contra esse pretexto, trago algumas das provocativas indagações do grande filósofo Júlio Cabrera, argentino radicado há décadas no Brasil:

“Por que não conhecemos filósofos mexicanos, argentinos, venezuelanos, africanos e indianos, e porque somos totalmente desconhecidos por eles? Por que não dialogamos com esses países? Por que, pelo contrário, conhecemos tudo acerca de todo tipo de pensadores alemães, franceses e norte-americanos? Quais são os atuais mecanismos de distribuição de informação filosófica? A ‘inexistência’ de filosofias em países como Brasil ou México, não será conseqüência do particular funcionamento desses mecanismos?”[6]

Cabrera responde que essas “não existências” de filósofos – e, no nosso caso, de pensadores do Direito – “são constituídas; não são ‘fatos’”. Ora, a Semana Jurídica foi uma prova disso. Tivemos a oportunidade de conhecer juristas brilhantes de outros países da América do Sul, que nos fizeram perguntas e apresentaram perspectivas nunca dantes trazidas à baila pelos referenciais teóricos germano-americanos que costumam circular pela FD-UnB. Ouvimos falar de uns outros tantos autores latino-americanos. Será que se procurarmos bem, não desconstruiremos nosso preconceito?

Por fim, evidente que há exceções a confirmar a regra da colonização – e eu lembro que estou a tratar aqui do pensamento jurídico hegemônico, e não das raras e louváveis manifestações de contra-hegemonia. O pensamento crítico no Direito Penal, por exemplo, tem uma identidade latino-americana mais forte, e acredito que o nome do argentino Eugenio Raúl Zaffaroni seja conhecido nos quatro cantos da comunidade jurídica do Brasil.

Valorizemos, pois, essas exceções, e ampliemo-las. Abandonemos o preconceito de que não há, nos nossos trópicos, sertões, pampas e Andes, pensadores à altura dos grandes alemães, americanos, italianos, franceses e espanhóis com que tanto aprendemos. Construamos um espaço jurídico de comunicação latino-americana capaz de reconhecer-se como relevante, constituir-se como referência para si e os outros. Abramos os olhos para as experiências sociais dos equatorianos e as inovações institucionais dos bolivianos, estudemos a jurisprudência da Suprema Corte da Argentina e leiamos os autores chilenos, convidemos os colombianos a participarem de colóquios no Brasil e enviemos trabalhos para Congressos no Paraguai. Vejamos os filmes argentinos, leiamos os romances peruanos e as revistas jurídicas da Guatemala. Façamos intercâmbio no México durante a graduação, Mestrado na Costa Rica, Doutorado no Uruguai e Pós-Doutorado na Venezuela…

Enfim, respondamos, na universidade, ao desafio político da integração da América Latina, com vistas à sua emancipação democrática.

¡Y que vivan los estudiantes, que abriram fissuras libertárias no concreto armado da FD-UnB com essa grande Semana Jurídica!

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