Eu devia ter uns 11 anos. Lá no INDI, minha escola de infância e pré-adolescência, a galera do futebol tinha uma prática, um tanto quanto aleatória, de, em alguns meses, deixar de jogar bola na quadra grande e descer lá para o pátio de baixo. A “max 200” era substituída por uma bolinha de cachorro, os gols grandes eram trocados por bancos de madeira e as quatro linhas pelas extremidades do pátio.
Em um desses dias, estava eu e meu time, o povo da eterna “turma A”, de próximos, conversando entre nós besteiras e sem prestar muito atenção no jogo. Enquanto isso, a bolinha pequena veio na nossa direção e se embaraçou no meio das nossas pernas. Apressado e com o time perdendo, um dos jogadores, amigo meu, tentou puxar a bola rapidamente com os pés, mas ela insistia em não sair dali do meio dos que estavam de “próximo”. Nesse entrevero de puxa e repuxa, ele fala: caralho, só os macacos!
Esse episódio me retornou à memória recentemente, a partir da discussão gerada pelo episódio do Daniel Alves e pela subsequente “campanha” do #somostodosmacacos. Estava a me perguntar se alguma vez eu tinha sido alvo da palavra “macaco”. Foi quando lembrei dessa situação, que volta e meia me reaparece para perturbar noites insones. Perturba, entre outros motivos, porque é a memória da primeira situação da qual eu lembro ter sofrido, diretamente, um processo de racialização expressa, verbal. Constrange-me, até hoje, por retrazer o sentimento de desespero de quem não sabe o que fazer naquela situação. Angustia por ainda eu sentir a ausência de reação quando o peso das marcas da história nos chama de maneira inesperada.
Pensando sobre o caso e sobre a banana comida por Daniel Alves, a reflexão não tem como deixar de perceber o futebol, seja na Espanha, no Peru, em grandes estádios ou no pátio do INDI, como lócus privilegiado da erupção racista e do cinismo que paira sobre alguns discursos. Por mais problematizações que devam ser feitas a respeito disso, talvez essas ofensivas, contra jogadores/as negros/as, se devam ao fato de no esporte, em mais específico no futebol, negros/as e brancos/as disputarem e estarem, ainda que apenas na aparência, em um mesmo patamar de representação, reconhecimento e de local de fala [1].
Quando o/a negro/a se encontra em posições de sujeito subalternizadas, o racismo se camufla mais facilmente. Não há motivos para ofensas e bananas quando as expectativas das estruturas racistas, que lhe chamam e lhe impõem um local de inferioridade, não são quebradas. Por outro lado, as ofensas e as assertivas diretas se tornam menos veladas quando o/a negro deixa a posição de silêncio ou o “lado b” da história, ganhando uma espécie de destaque no discurso oficial. Assim, a reação, a opressão visível e as vocalizações diretas se tornam menos incontidas em situações nas quais ocorrem frestas e fraturas no fluxo contínuo do racismo, ainda que espacialmente delimitadas, como no caso do futebol.
A branquitude, por óbvio, não gosta de perder privilégios: seja em espaços institucionais, educacionais ou até no “craque da vez”. A afirmação e o confronto por parte de um grupo subalternizado, perante um universal superior, sempre gera uma reação de proteção, advinda de uma paranoia daqueles/as que sentem estarem perdendo algo. Não tem como deixar de tecer o paralelo com a luta por direitos e por políticas afirmativas, quando a postura de se reconhecer enquanto negro no espaço público é sempre seguida, do outro lado, por: “ah não, mas aí já é demais” ou “não acredito que você está se utilizando da sua cor para pleitear isso”. No futebol, basta a presença negra; na luta por avanços concretos em processos de igualdade, o problema é reconhecer que a raça discrimina. Em tanto um como outro, trata-se da disputa por espaços de representação, da ideia que temos sobre nós e das subsequentes reproduções dos símbolos em clivagens e estratificações sociais.
Continuando a refletir sobre o “caso da bolinha presa entre as pernas” e girando para o recorte de um acontecimento pessoal, mas que é transversalizado por uma experiência coletiva. É sintomático que a palavra “macaco” tenha sido utilizada na primeira ofensa direta que recebi devido a minha cor; é cruel quando se visualiza o contexto – crianças de 11 anos jogando bola -; é dolorosa ao estendermos a análise para a provável série de causas que levou aquele xingamento.
Talvez o mais banal é notar que verbalizações não surgem do acaso. O fato de meu amigo, ainda uma criança, utilizar a expressão “macaco” evidencia o racismo não como um acontecimento aleatório, repetido em casos excepcionais e específicos, como muitos/as tentam localizá-lo. O racismo não é um ponto fora da curva, mas algo estrutural. E é esse “algo estrutural” que estabiliza o significado pejorativo no significante “macaco”; são os dispositivos de racialização que, ao longo da história, fixaram o discurso e a semântica racista na palavra. A pequena verbalização, realizada ali em um aperto confuso de pernas atrás da bola, carrega um peso da história, que restringe a dispersão da linguagem em um termo que serviu para marcar os envolvidos na situação. [2]
Na crueza cruel da inocência de crianças jogando futebol, sem querer, eu era envolvido, através de uma única palavra, por uma fronteira que me separava deles, dos meus amigos. Não era como qualquer outro xingamento repetido a exaustão nas brincadeiras. Aquele era diferente. E era sua diferença que me tirava a reação. Eu não podia respondê-lo “à altura”, muito menos podia me desvencilhar da alcunha retornando para a casa e esquecendo tudo que aconteceu. Eu carregava o motivo do xingamento na pele; comigo. Uma criança de 11 anos, que por um simples acontecimento na “pelada do intervalo”, começou a entender melhor como “as coisas funcionavam” e, assim, a se sentir um estrangeiro perante uma determinada “comunidade”.
E sabe se lá que tipo de trauma passei, que um/a menino/a passa ao se perceber como excluído permanentemente por algo que o “marca”; que tipo de complexo e recalque a situação de estrangeiro/a é capaz de desenvolver; que tipo de atitudes reiteradas comecei a fazer para me sentir pertencido, para me afastar daquela demarcação inscrita na pele. Para me sentir igual. Para me sentir menos negro.
Na última noite, a banana e o macaco me fizeram revisitar minha infância com outras lentes, com olhos que ressaltavam como o racismo criou paranoias naquele pequeno Marcos: a autorepresentação inferiorizada (na minha cabeça, eu era “o estudante com cara de pobre”), da qual escapava todos os dias ao ser buscado por um carro do ano (ai deus se fosse “meu velho” na Saveiro antiga dele); o constrangimento balbuciante em estar ao lado dos meus pais perante meus/minhas amigos/as: a fraternidade envergonhada do pai e a mãe loira estranha que me redimia; a casa como um elemento de amostra, de poderio, que era de alguma forma incoerente em relação à visão que tinham de mim na escola (ou: “pois é, eu sou como vocês!”); o sentimento ambíguo perante um amigo que tinha o apelido de “Negrito”, pois me identificava, mas “ai bem que não era eu o apelidado daquela maneira”.
Confusões simples e “preconceituosas” da cabeça de uma criança negra em uma escola de um “bairro nobre”. Eram confusões de alguém que tentava se mover em um mundo que não lhe pertencia. De uma pessoa que loucamente tentava alcançar um falso reconhecimento, quando cada vez mais esse reconhecer se tornava contraditório e distante.
Foi a discussão sobre a possibilidade de reapropriação da palavra “macaco” que me levou ao passado, às dores que, ainda moleque, comecei a sentir de maneira recalcada, sem saber muito bem o porquê daquela sensação estranha. Situação estranha que permanece, mas agora de maneira mais “enxergável”. E é esse passado – meu, nosso, coletivo – que diz: não, não somos todos macacos. A dor que eu senti é imperdoável para ser ressignificada.
[1] sobre espaços de representação, reconhecimento e de discurso, é interessante notar as peculiaridades do racismo à brasileira. Enquanto nos Estados Unidos, por exemplo, a discussão sobre representatividade do/a negro/a tem como base simbólica fundamental o presidente Obama, no Brasil, por outro lado, as imagens mais reproduzidas, para se falar da suposta ocupação racial de espaços de expressão, são geralmente relacionadas a esportistas (mais notadamente o caso de Pelé). Com essa relação, só se procura levantar questões sobre as especificadades do racismo em cada contexto, sem querer tecer considerações sobre qual conjuntura é mais branda. Racismo é racismo e ponto.
E é importante sempre problematizar essa ideia de representatividade, que carrega nela mesma mecanismos racistas. Primeiramente por ela poder passar uma imagem de sociedade “pós-racial” a partir de representações que fogem do fluxo comum do racismo, o qual inferioriza, controla e impede largamente o acesso de determinados grupos a instância de produção de discurso e decisão. E segundo, o próprio mal da representação: representar algo não significa que as estruturas de uma sociedade de fato estejam mudando.
Por fim, cabe esclarecer que quando falei da relação branco/a e negro/a no futebol, a consideração, em grande medida, se restringe às quatro linhas. O esporte apresenta uma série de outras estratificações que fogem ao duelo dos/as 11 contra 11, como a questão da presença de negros/as como técnicos/as, assistentes, dirigentes, comentaristas ou jornalistas.
Sobre essas considerações, agradeço as reflexões da professora Ana Flauzina, que me trouxe importantes luzes sobre algumas diferenças entre o racismo no Brasil e aquele praticado nos Estados Unidos, assim como ao amigo Luiz Carlos, que me ajudou a aprofundar a análise da problemática da representação do/a negro/a a partir do futebol.
[2] Para uma breve história da palavra “macaco” como inferiorização racista, texto do professor James Bradley, no blog do Negro Belchior: http://negrobelchior.cartacapital.com.br/2014/04/29/xingar-de-macaco-uma-pequena-historia-de-uma-ideia-racista/
*Título baseado no poema de Victoria Santa Cruz: https://www.youtube.com/watch?v=RljSb7AyPc0&list=FLkzszhbtyTTJGkHuqTyxB1A