Vade retro, AI-5. Vade retro, Ives Gandra!

Por João Telésforo Medeiros Filho

Há juristas e juristas. Juristas para quem o direito deve ser sempre (re)construído de maneira democrática, praticado e defendido para a promoção integral dos direitos humanos; e “juristas” preocupados, antes de tudo, com a conservação da ordem social vigente, embora costumem colorir seus discursos com vernizes pseudodemocráticos.

Ives Gandra da Silva Martins dá hoje, em artigo publicado na Folha de São Paulo, nova demonstração de que pertence ao segundo grupo.

Discordar da visão de mundo conservadora desse cidadão não significa que não tenhamos o dever de respeitá-la. Não pode merecer qualquer respeito, no entanto, quando mente deslavadamente como fez nesse texto, ao dizer que, durante a ditadura civil-militar de 1964-85, o Poder Executivo “nunca pressionou o pretório excelso“.

O que foram então, senhor Ives Gandra, as cassações dos Ministros Victor Nunes Leal, Evandro Lins e Silva e Hermes Lima – três dos mais brilhantes juízes da história da Corte – em 1969, sob o AI-5?

O professor Luís Roberto Barroso tem o hábito de dizer que temos direito às próprias opiniões, mas não aos próprios fatos. Mesmo sabendo que talvez não haja fatos, apenas interpretações, eu gostaria de conhecer a tortuosa interpretação realizada por Ives Gandra para concluir que na cassação desses três honrados Ministros (entre outros atos que podem ser apontados) não se pode observar o Poder Executivo, sob a ditadura, não apenas “pressionando”, mas castrando as garantias constitucionais do Supremo Tribunal Federal.

Não aceitaremos que, décadas depois, venha um Ives Gandra desonrar a luta desses Ministros e de tantos outros cidadãos, e distorcer a história para minimizar os males produzidos pela nossa terrível ditadura – aliás, não por acaso, num jornal que colaborava acintosamente com ela e recentemente a chamou vergonhosamente de ditabranda.

“Deus é generoso. AI-5 nunca mais. Vade retro, Satã”, disse Evandro Lins e Silva ao fim da vida, segundo narrou Cezar Britto no artigo que reproduzo abaixo.

Fica o alerta: quando se deparar com o juízo de alguém tido por “jurista”, sobre não importa qual questão política ou problema jurídico, não se esqueça de examinar se é um jurista do quilate de Victor Nunes, Lins e Silva e Hermes Lima, ou se é “jurista” como Ives Gandra. Para o segundo, brademos sem pestanejar: vade retro!

PS: Ives Gandra também elogia o governo Dilma, o que tem sido a regra entre os setores conservadores do país… Curioso, para dizer o mínimo.

Abaixo, o artigo publicado por Cezar Britto em 2009, na condição de Presidente da OAB, para honrar a memória dos Ministros ultrajada por Ives Gandra (fonte: http://paginadoenock.com.br/home/post/2065).

19/01/2009

Três heróis da Justiça
CEZAR BRITTO

EM 16 de janeiro de 1969, na sequência da edição do ato institucional nº 5, a ditadura militar investia contra o Supremo Tribunal Federal, cassando três de seus mais ilustres nomes: Victor Nunes Leal, Hermes de Lima e Evandro Lins e Silva.
Em solidariedade a eles, renunciaram em seguida os ministros Gonçalves de Oliveira e Lafaiete Andrade, num gesto admirável, que os eleva ao mesmo patamar moral dos cassados.
O regime militar, que já investira contra o Congresso, cassando o mandato do deputado Márcio Moreira Alves, por discurso considerado ofensivo às Forças Armadas, ignorando a Constituição, que garantia imunidade aos parlamentares em manifestações de voto e opinião, centrava suas baterias contra nossa corte suprema.
A ditadura mandava às favas seus últimos escrúpulos. Deixava de ser envergonhada, no dizer de Elio Gaspari, para ser escancarada. Cassações de mandatos, prisões irregulares, fim do habeas corpus, torturas, censura à imprensa e fechamento do Congresso pontuaram aquele trágico momento, que mergulharia o país, por uma década, em espesso ambiente de medo e repressão.
Passados 40 anos, aprovada a anistia, promulgada nova Constituição, que estabeleceu no país o Estado democrático de Direito, aquele ato não obteve ainda nenhum tipo de reparação. Em nenhum momento o STF manifestou-se em relação a ele, mesmo para repará-lo simbolicamente, já que os personagens em pauta não mais estão em nosso convívio.
Eis aí uma dívida moral e histórica que, no ensejo das quatro décadas daquele brutal acontecimento, o STF está em condições de resgatar. Mais que um ato de justiça, será gesto cívico e de louvor à liberdade, de densa significação, em consonância com as mais altas tradições do Judiciário.
Quando se cassa um magistrado por agir com independência, atendo-se apenas à lei, são os próprios fundamentos civilizatórios que estão sendo afrontados. Reparar tal gesto, pois, transcende a esfera meramente individual e abrange a própria instituição da Justiça.
Foram três luminares do direito no Brasil submetidos à humilhação de uma exclusão truculenta, sem nenhum embasamento legal. A agressão teve sobre cada qual consequências psicológicas dramáticas que se refletiriam por toda a vida.
Evandro Lins e Silva, por exemplo, jamais a absorveu. Após a anistia, chegou a cogitar de pedir seu reingresso àquela corte, no que foi contido por Victor Nunes Leal, que argumentou que, àquela altura da vida, septuagenários, nada mais tinham a acrescentar ao Supremo. Ledo engano. Tinham -e muito.
No dizer de Heleno Fragoso, “Victor Nunes Leal foi o maior juiz que o Supremo Tribunal teve, no período em que atuou a minha geração de advogados, sem esquecer que o Supremo, naquele tempo, era um verdadeiro escrete de juízes magníficos”.
Hermes de Lima, um dos fundadores do Partido Socialista, escritor, membro da Academia Brasileira de Letras, foi punido, como os outros dois, por sua independência e coragem. Opôs-se ao pedido de licença para cassar o mandato de Márcio Moreira Alves. Sustentou sua resistência com argumentos tecnicamente irrespondíveis, a exemplo de Evandro e Victor Nunes.
A cassação não os marginalizou no âmbito da profissão, tal o conceito de que desfrutavam, em décadas de brilhante carreira. A OAB, inclusive, dispensou-os da quarentena legal, afrontando o regime militar e o AI-5, permitindo que voltassem a advogar imediatamente. Mas o efeito moral, segundo testemunhos dos que com eles privaram, causou-lhes irreparáveis danos psicológicos.
Basta ver o que escreveu Evandro Lins e Silva, 25 anos após o acontecimento, recordando-o: “(…) Ignoro até hoje a razão da nossa aposentadoria.
Não fomos ouvidos. Na festa de meu jubileu profissional, no Primeiro Tribunal do Júri, no Rio de Janeiro, voltei, 50 anos depois, à mesma tribuna do dia da estreia. Pedi ao Criador que, no juízo final, me assegurasse o direito de defesa, recusado na Terra. Com o que aprendi nas tribunas forenses, na defesa da liberdade dos outros, hei de lutar, na corte celestial, por minha própria causa, na esperança de conquistar o reino dos céus (…) Deus é generoso. AI-5 nunca mais. Vade retro, Satã”.
Fica aqui, pois, o registro desta data e a proposta da OAB, que teve a honra de tê-los em suas fileiras, de uma reparação formal por parte do STF, que alcançará os que renunciaram em protesto à cassação.
Eles o merecem. E o Brasil, que tem fome e sede de justiça, precisa de atos assim, que lembrem que, mesmo nos momentos mais infelizes de sua história, pôde contar com o heroísmo de magistrados abnegados, que ao rei admitiam dar tudo, menos a honra.

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CEZAR BRITTO, 46, é presidente nacional da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil).

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