André Gorz – Parte V

Por Laila Maia Galvão

Acaba de ser lançado pela Editora Annablume o livro Ecológica, obra póstuma do filósofo André Gorz. Em cinco ensaios diferentes, o escritor critica o sistema capitalista e a sua lógica de produção em massa e de consumismo desenfreado.

Em um dos ensaios publicados, que pode ser lido aqui , Gorz se debruça sobre um tema atual e que aflige todas as grandes cidades do mundo. Esse enorme problema tem um nome: chama-se carro. Trata-se de uma tecnologia do final do século XIX que chega a pesar algo em torno de uma tonelada e que é capaz de transportar um número reduzido de pessoas, funcionando, na maioria das vezes, como meio de transporte individual. O assunto abordado em A Ideologia Social do Carro é fascinante justamente porque a análise do impacto do carro serve como ponto de partida para uma reflexão mais ampla sobre nossas práticas sociais.

No ensaio, Gorz identifica o carro como um bem de luxo, usufruído por uma minoria. A partir daí, aponta os problemas de uma política pública que se propõe a “garantir um carro para cada família” e a fortalecer a indústria automobilística (algo bastante próximo, aliás, da política realizada pelos governos brasileiros há mais de meio século). Gorz critica também a demagogia da esquerda que vê o carro como uma “vaca sagrada”.

A grande vantagem do carro, que seria a velocidade na locomoção, foi seriamente prejudicada pelo aumento da frota e pelos congestionamentos. Para melhorar o tráfego dos carros, alterou-se toda a configuração urbana, o que prejudicou a circulação dos habitantes em suas próprias cidades. Com o afloramento do egoísmo cruel e agressivo do motorista, cenas chocantes passaram a ocorrer no trânsito todos os dias. Para Gorz, o carro teria tornado a cidade grande inabitável.

É interessante notar que apesar de focar a questão do carro, Gorz não reduz o problema a isso. Para ele, não se pode pensar o problema do transporte isoladamente. É preciso sempre relacioná-lo ao problema da cidade, da divisão social do trabalho e da compartimentalização da vida social. Se a cidade é considerada um inferno e o carro acaba se tornando um refúgio para seus moradores, então o problema do carro é um problema de direito à cidade: “A cidade precisa voltar a ser agradável”.

Gorz fala sobre a importância de tornar a cidade um ambiente bom e acolhedor e de instituir novas relações sociais. É por isso que ressalta a importância do transporte coletivo, mas não reduz a solução do problema à ampliação de linhas de trens e de ônibus. Para ele, o carro e os impactos gerados por ele no meio ambiente e no cotidiano das pessoas somente poderão ser combatidos por meio de uma profunda revolução cultural.

As reflexões de Gorz são importantes porque tentam resgatar a maneira como o carro se firmou como grande alternativa de locomoção dos habitantes nas grandes cidades e os efeitos dessa escolha política para a conformação dos aglomerados urbanos. E Gorz é capaz de tocar na ferida: porque alguns setores da esquerda insistem em defender com unhas e dentes esse modelo urbano, a partir da utilização em massa do carro? Essa é uma discussão que a esquerda (as esquerdas) brasileira precisará enfrentar, mais cedo ou mais tarde.

O problema já está colocado. Cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte são intransitáveis em certos horários do dia. A “solução” desse problema nas grandes cidades tem sido a construção de rodoaneis, minhocões e de condomínios em áreas distantes, o que traz consequências como: diminuição das áreas verdes e ampliação da área asfaltada, enchentes, maior poluição e maior segregação urbana. Outras alternativas como a ampliação do transporte coletivo e a efetivação do direito à cidade para todos tem ficado de lado. É aí que deve entrar em cena a crítica feroz de Gorz ao carro e, além disso, a reivindicação por novas relações sociais entre as pessoas que compartilham diariamente a mesma cidade.

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