Cursos pagos na UnB: prejuízos sociais e acadêmicos da mercantilização da educação

Publico aqui, em primeira mão, texto que escrevi no início de fevereiro e que deve sair na próxima edição do Jornal do DCE UnB,  em breve.

Cursos pagos na UnB: Prejuízos sociais e acadêmicos da mercantilização da educação

Por João Telésforo Medeiros Filho,

estudante de Direito, Coordenador de Formação Política e Movimentos Sociais do DCE

O Ministério Público Federal entrou em janeiro com uma ação na Justiça pedindo a suspensão da cobrança de taxas nos cursos de especialização (“pós lato sensu”) da UnB. O MPF afirma que os cerca de 70 cursos pagos da universidade, que chegam a cobrar de cada aluno mais de R$ 10 mil anuais, contrariam o princípio constitucional da “gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais”.

Em fevereiro de 2009, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região deu razão ao MPF e ao DCE-UFRGS em pedido análogo contra a cobrança de mensalidades por cursos da UFRGS. O TRF citou súmula vinculante do Supremo Tribunal Federal de 2008 que reconhece que o princípio da gratuidade do acesso ao ensino público aplica-se também ao ensino superior. Na decisão que deu origem à súmula, o STF assinalou que “o legislador constituinte, ciente do fato de que o ensino público superior é acessível predominantemente pelas classes sociais detentoras de maior poder aquisitivo, buscou produzir mecanismos que superassem essa desigualdade de acesso, dentre os quais a gratuidade do ensino público nos estabelecimentos oficiais”.

Caso alguém tenha dúvidas sobre o efeito excludente da cobrança de mensalidades, basta verificar as estatísticas demonstrando que o acesso às universidades privadas é ainda mais elitizado economicamente do que às públicas. A cobrança de matrículas e mensalidades, portanto, é um meio inconstitucional e socialmente injusto de financiar a atividade universitária.

O interesse corporativista de parte dos professores privatiza o ensino e pode se contrapor à qualidade acadêmica

Se a cobrança de taxas é inconstitucional, antidemocrática, contrária ao sentido público da Universidade, então por que a UnB a mantém? As justificativas em geral dadas para a cobrança costumam ser que (i) cursos de pós lato sensu não são atividade-fim ou “essencial” da universidade, mas atividade-meio, que ajudaria a financiar as atividades-fim (ensino, pesquisa e extensão); (ii) é legítimo que os professores procurem complementar seu salário por meio da remuneração extra que ganham nesses cursos.

Essas justificativas beiram o absurdo. Não nego que cursos de especialização possam cumprir papel social relevante e ser do interesse acadêmico da universidade, quando feitos com objetivos acadêmicos autênticos, e não apenas para vender diplomas. Oponho-me à cobrança de taxas, não aos cursos sérios que existem. Porém, curiosamente, a estranha justificativa para cobrar as mensalidades reside justamente na afirmação de que todos esses cursos não são atividades-fim ou “essenciais”. “Pós lato sensu” não é ensino, pesquisa nem extensão? O que é, então? Puro comércio? Teremos de acrescentar o comércio como quarta dimensão do afazer universitário, ao lado do clássico tripé ensino-pesquisa-extensão?

Além do dano social imposto pela barreira censitária, outro prejuízo pode ser causado por esses cursos caça-níqueis: ocorre incentivo econômico para que os professores os priorizem, em detrimento de suas atividades de pesquisa e sobretudo de extensão e ensino – já que via de regra não recebem remuneração extra para exercê-las. Nós, estudantes de graduação, talvez sejamos os maiores prejudicados…

Não se pode concordar com o discurso de que, por ganharem mal, os professores tem o direito de complementar seus salários à custa da cobrança de mensalidades. Seria tão bizarro quanto um médico do SUS (Sistema Único de Saúde, serviço público), sob o argumento de que é mal remunerado, passar a cobrar de pacientes que atende em ambulatórios públicos! Já imaginaram um médico cardiologista do SUS que passasse a atender também – pelo SUS – pacientes com câncer, mas cobrando deles? A justificativa seria que ele já faz sua obrigação ao atender os doentes do coração, mas precisa complementar seu salário e arrecadar fundos para o hospital – o atendimento a pacientes com câncer seria para ele apenas “atividade-meio”, então ele poderia cobrar… Obviamente, isso seria inconstitucional, desnaturaria o caráter de serviço público do SUS, imporia uma restrição econômica ao direito à saúde, e talvez ainda acabasse por atrapalhar a dedicação do doutor ao serviço de cardiologia.

Evidente que o salário dos professores precisa melhorar, mas o caminho para isso deve ser o das lutas democráticas pela afirmação da universidade como serviço público, gratuito e de qualidade, e não o da sua privatização e descaracterização acadêmica para fins privados dos professores… Nesse sentido, deve-se louvar a posição do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES-SN), contrária à cobrança de taxas pela universidade em qualquer espécie de curso.

A universidade pública precisa, isto sim, de vultosos investimentos públicos que garantam sua qualidade e a expansão necessária para democratizá-la e atender às demandas sociais. Devemos lutar para que a fonte desses investimentos – os tributos que a sociedade paga – sejam recolhidos de forma mais justa, eficaz e progressiva: para que o Imposto sobre Grandes Fortunas, por exemplo, previsto na Constituição Federal de 1988, seja regulamentado e cobrado. Além disso, encontraremos os recursos necessários para fazer a revolução de que o Brasil precisa na educação (das creches às universidades) por meio do controle social do orçamento público e do combate à corrupção – e não pela injusta, ilegal e resignada cobrança de taxas dos estudantes…

UnB do Século XXI: Universidade Pública ou Universidade da Mandioca?

Assisti ontem a uma Aula Magna do professor José Geraldo de Sousa Junior, atual Reitor da UnB, para os estudantes de Direito da UFRN. Em determinado momento, ele lembrava que a primeira Constituição brasileira, de 1824, enunciava os direitos fundamentais à liberdade e à igualdade, mas eles eram negados à imensa massa de trabalhadores – escravos – do país. O recurso dos juristas para legitimar a exclusão era afirmar que escravos não eram pessoas, mas coisas (“ferramentas falantes”, no dizer dos antigos)…

Já os juristas de hoje afirmam que aos cursos de especialização não se aplica o princípio de gratuidade porque eles não constituem “atividade-fim”, essencial ou de ensino. O mesmo velho recurso dos juristas de inventar uma distinção absurda para acobertar uma política de exclusão contrária aos direitos humanos (o direito fundamental à educação, no caso atual). O Anteprojeto da Constituição de 1824 condicionava o direito ao voto a um critério censitário, de renda, que não era medido em renda, mas em alqueires de farinha de mandioca… O passado faz-se presente nas  barreiras econômicas impostas contra o direito à educação.

Sempre haverá, porém, como houve outrora contra a escravidão, juristas, educadores, cidadãos comprometidos com a afirmação dos direitos humanos. Espera-se que o Reitor José Geraldo mantenha-se fiel a esse lado, e assuma a luta contra a cobrança de taxas na UnB. Não há outra forma de ser coerente com o que escreveu sobre a mercantilização da educação em artigo recém-publicado (“Educação em Direitos Humanos: desafio às universidades”, Revista Direitos Humanos, edição n. 2, 2009):

Com efeito, contrariando as conclusões da Conferência Mundial do Ensino Superior realizada em Paris, em outubro de 1998, sob coordenação da Unesco, quando se estabeleceu que o ensino superior é um serviço público, portanto, um direito a que todo cidadão tem acesso, ganha intensidade no seio da Organização Mundial do Comércio (OMC) a tentativa, capitaneada por importantes países, entre eles os EUA, o Canadá, a Austrália, a Nova Zelândia, a Noruega e o Japão, de considerar o ensino superior como um serviço comercial.

Em bem fundamentado estudo sobre esse tema, o professor Marco Antônio Rodrigues Dias, ex-diretor da Divisão de Ensino Superior da Unesco, identifica a razão dessa tentativa, ao revelar a existência de cobiçado mercado mundial de conhecimento, que poderia ter alcançado o montante de 53 bilhões de dólares em 2003.

E mais à frente, reproduzindo indagação do professor Boaventura de Sousa Santos:

Nesse momento, traz-se o Mercantilismo para dentro da universidade. Como é que professores que estão envolvidos em uma universidade totalmente mercantilizada – ou que podem ser forçados a participar dela – podem depois defender durante as aulas os valores da solidariedade, da cidadania, da Democracia”.

A UnB do Século XXI trilhará o caminho da educação como serviço público ou como mercadoria? Queremos uma universidade da mandioca, ou uma universidade pública?

6 respostas em “Cursos pagos na UnB: prejuízos sociais e acadêmicos da mercantilização da educação

  1. Caro Telésforo, o seu texto ficou muito bom.

    No entanto, queria perscrutar os limites da interpretação constitucional que você e o B&D dão ao tratamento constitucional da educação em estabelecimentos oficiais.

    Acho que é preciso fazer uma sintonia fina e mostrar, inclusive num leque mais amplo, saídas adequadas aos mais plurais influxos de mercantilização da Universidade.
    Aproveitando o gancho boaventuresco, concordo que é preciso, sim, combater a privatização possessiva de direitos , mas com o olho vivo e o faro fino.

    Inicialmente, é necessário ponderar que o fato de professores dedicarem-se menos ou de forma inadequada às obrigações e cargas horárias pode, sim, ter relação com uma opção pessoal um tanto prevaricadora de dar atenção especial aos cursos que ministra a um público pagante. Mas isso, por ser um comportamento desviante, deve ser combatido no âmbito disciplinar interno à Administração. Afinal, os professores estão jungidos a um estatuto legal que determina a carga horária e todas as demais obrigações a cumprir, que devem ser aferidas, ou melhor, cujo desvio pode ser aferido e, por consequência, punido. Que se reconheçam os problemas do desenrolar do próprio procedimento apuratório e sancionatório – espaço em que a sanha prevaricadora também se refestela -, mas daí a minar a existência e a efetivação de um curso de pós lato sensu ou coisa que o valha me parece desproporcional, ainda que não se considere a saída pela apuração de responsabilidade e punição disciplinar a melhor e mais adequada. O que privatiza, nesse sentido, não são os cursos, mas o vezo prevaricador e indisciplinado de alguns professores. O desrespeito puro e simples aos regimes de dedicação a que cada docente está vinculado me parece muito mais indicador e gerador dos problemas que você aponta do que os tais cursos. Assim acho porque me faltam dados mais concretos para perceber o espectro de consequências desses cursos.

    Certamente o argumento “podia tá matâno, podia tá robâno, tô aqui dando aula” tem de ser massacrado e escorraçado e envergonhado publicamente. Mas, a meu ver, é preciso fazer uma análise de fato para constatar se e em que medida tais cursos sufocam a vocação universitária. Você teria dados a respeito de quais cursos ministram tais cursos? É uma prática generalizada em todos os cursos, e com efeitos deletérios em todos eles? Há informações de que chega a haver conflitos de horários entre as aulas e atividades desses cursos e as atividades ‘normais’ da instituição? Não estou querendo sobrepor o aspecto da efetividade de tais cursos às questões de principiologia — constitucional, inclusive –, mas faço tais questionamentos porque as justificativas de existência desses cursos vai muito além do que a universidade, ou mesmo os docentes, precisarem passar o chapéu para conseguir manter-se em funcionamento.

    É preciso, nesse sentido, realizar uma sintonia fina. Há vários cursos, públicos-alvo, formas de financiamento e controle, objetivos perseguidos. Tal diversidade não pode ser surpimida sob um label totalizante.

    Por exemplo, os cursos pagos por instituições públicas, como a magistratura e as agências reguladoras para a capacitação do seu corpo técnico, estariam no bojo da crítica também? Esses cursos, especificamente, promovem, sim, ensino; realizam, igualmente, pesquisa (na medida em que, ao menos nos casos das instituições citadas, exigem como requisito a produção de pesquisa e elaboração de monografia). E, por óbvio, extensão. Realizam extensão de forma contundente, na medida em que os conhecimentos e a percpeção que a experimentação universitária traz influencia decisivamente não só a precisão e o apuro técnicos, mas principalmente o sentido da atuação perante a sociedade. O próprio comportamento funcional dos agentes é alterado, vez que a abertura instrumental e comunicativa com a sociedade passa a ser vista como elemento essencial da formação da política pública ou da decisão que se almeja. Esse reconhecimento da sociedade como protagonista incontornável, que deixa de ser mero alvo de políticas herméticas baseadas em motivos arcanos, me parece uma das missões mais nobres da Universidade.

    Não acredito, portanto, que tais cursos possam ser alijados da Universidade. Seria, na minha visão, um certo liberalismo bocó jogar por terra os benefícios sociais inúmeros de uma atuação mais adequada tecnicamente pelo fato de nem todos poderem, em tese, fruir dos cursos. É aquela sede de divinização do cidadão só para fazê-lo saber que é portador de direitos os mais sagrados – e só. Por exemplo: impede-se o juiz de se capacitar melhor para lidar, sei lá, com Direito Previdenciário porque a Dona Maria das Couves, trabalhadora rural, não poderia estar lá, lado a lado com o juiz estudando com ele por não poder pagar; daí, na hora de conceder ou não o benefício previdenciário à própria – e expropriada – Dona Maria das Couves, o juiz mal preparado – ou não tão bem – deixa de conceder por não entender que ela, tendo lavrado a terra no núcleo familiar a vida toda, não tem condições de provar por prova documental sua condição de trabalhadora rural.

    Apesar da esdruxulidade do exemplo, acho que exemplifica bem o ponto e estou certo de que você entendeu o cerne e a relevância da minha manifestação. Portanto, gostaria de sugerir a você, que atingirá um público bem amplo com a publicação, que faça alusão e, por consequência, discrímen a tais e quais cursos em suas diferenças, vez que a crítica genérica à mera existência deles me parece mais danosa, porque deflacionadora de relevantes fatores de bem estar social aos quais a Universidade não poderia de forma solipsista dar de ombros.

    A não ser aqueles cursos com o propósito específico de capacitar os setores que exercem prerrogativas e serviços públicos ou, ao menos, de utilidade pública, não tenho dúvidas de que tais práticas venham sendo acintosas à Universidade e desvirtuadoras das vocações a que ela deve se prestar, segundo os ditames constitucionais de regência do ensino público e de sua forma de acesso, seus objetivos e sua gestão. E, nesse sentido, tenho de concordar integralmente com você quanto ao aspecto censitário e os problemas advindos de uma explosão de cursos paralelos voltados a um público muito específico ou abertos a qualquer mambembe endinheirado. A Universidade viraria uma mera grife – mais do que já é considerada pela caipirice valorativa da nossa cultura média, que quer entrar nela a todo custo e em qualquer curso sem saber antes mesmo o porquê e para quê – a dar um perfumezinho de verdade e um atestado prévio de competência ou até de excelência a quem tivesse o selo de cera de vela vermelha com o brasão universitário sobre um pergaminho, no melhor estilo medieval.

    Por fim, igualmente relevante seria aludir de forma mais ampla à problemática de cursos para setores específicos no ambiente da Universidade, como aqueles que foram cogitados para os Sem-Terra em Goiás.

    Como não se pode permitir o desvirtuamento da publicidade de acesso à Universidade, não podemos ser Universidade da Mandioca nem pro latifundiário, nem pro capiau.

    Se a questão é de princípio, caberia analisar a (in)constitucionalidade (já que em tese é lá, e não noutro lugar que os princípios se encontram com alguma raiz – de mandioca?), e, depois, analisar os prejuízos e riscos sociais e institucionais – ou os ganhos também, why not?

    O diabo está nos detalhes. Então, com os meus parabéns pela iniciativa, fica o convite a explorar bem esses discrímens.

    Abraços a todos,

    João Paulo

  2. Oi, João, obrigado pelo convite a esse debate, que nós dois e outros colegas temos feito desde a época de CADIR – sobre cursos específicos para categorias de servidores públicos, ou para assentados da reforma agrária. Estou planejando um artigo sobre isso em breve, talvez o poste aqui. Meditarei também sobre as outras questões que vc levanta. Abraço!

  3. Eu discordo do João. Seria necessário verificar as decisões de um juiz antes e depois de um curso de especialização pago pelo TJ para afirmar que há um papel relevante nos cursos de especialização (ou pós-graduação lato sensu). Ele pode ficar pessoalmente mais culto, ou até se interessar em fazer um mestrado (e tirar licença para estudar enquanto recebe seu salário de quase 20.000 reais), mas considero que as chances de um juiz utilizar conceitos de direitos humanos para julgar casos de contratos, fazenda pública, família, etc. são mínimas – nada que não pudesse ser obtido por meio do uso da doutrina já disponível no gabinete dele. Para mim, é difícil acreditar que os juízes (e outros funcinoários públicos) não são privilegiados com cursos que em nada influirão na sua prática.

  4. Um adendo: já que se pretende expor funcionários públicos a pesquisa de ponta da Universidade, na esperança não mensurada de que um ou outro vai aplicá-las na sua vida profissional, então que se faça cursos online, com custo mais baixo para as instituições públicas. Quem for predisposto a aprender e aplicar a pesquisa em sua prática, vai fazê-lo assim. O resto vai faltar muitas aulas, e fazer monografias picaretas, só porque precisa fazer cursos de especialização para cumprir uma regra do trabalho, ou aumentar seu salário – ou simplesmente porque quer faltar trabalho.
    Vamos economizar dinheiro. O próximo passo será aplicá-lo em destinos mais relevantes do que tornar funcionários públicos mais cultos com dinheiro público.

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